por Duda Menegassi e Daniele Bragança | O Eco
O ano de 2020 será lembrado por muitas coisas, entre elas, pela “pérola” do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de “ir passando a boiada”, enquanto as pessoas estão focadas no coronavírus, dita durante reunião ministerial de portas fechadas em abril e que veio à público em maio. A boiada virou sinônimo para todas as ações classificadas como desmonte por ambientalistas, que visam enfraquecer a legislação ambiental e abrir caminho para a destruição da natureza. Durante o ano, diferentes medidas do governo federal mereceram a alcunha. Para fazer uma retrospectiva diferente, ((o))eco reuniu 11 especialistas de diferentes focos de atuação na área ambiental e alguns dos “vigias da porteira”, para opinar qual teria sido a maior boiada de 2020 e apontar para qual boiada devemos ficar atentos em 2021.
Confira o que eles falaram:
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Marcia Hirota, diretora-executiva da Fundação SOS Mata Atlântica
A maior boiada em 2020 começou na reunião ministerial de 22 de abril quando o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu que se aproveitasse o momento em que “a atenção da imprensa está voltada exclusivamente… quase que exclusivamente pro Covid” para “passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação…” e admitiu que tinha como objetivo “simplificar a Lei da Mata Atlântica”, “a pedido do Ministério da Agricultura”. Por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), o Governo Federal busca usar o Código Florestal para restringir o alcance de dispositivos da Lei da Mata Atlântica que exigem a recuperação ambiental de áreas ilegalmente desmatadas a partir de 1990, quando foi aprovada a primeira norma especial de proteção do bioma. O objetivo seria regularizar uma pequena parcela de áreas exploradas pelo setor agrícola, cujas atividades se iniciaram de forma ilícita. Se prosperar, a medida anistiará multas, acabará com embargos e impedirá o reflorestamento de regiões degradadas. Além de estimular novos desmatamentos – por fomentar a cultura do perdão dos crimes ambientais -, o pleito do Governo pode causar danos irreversíveis para o bioma, considerado um dos mais ricos em biodiversidade no planeta e o mais degradado do país. A Fundação SOS Mata Atlântica, WWF-Brasil, Instituto Socioambiental, Rede de ONGs da Mata Atlântica, Associação Mineira de Defesa do Ambiente e Apremavi pediram ao Supremo Tribunal Federal que rejeite a ADI nº 6.446, ajuizada pelo Presidente da República na tentativa de enfraquecer as regras de proteção da Mata Atlântica.
[E que boiada que devemos ficar atentos em 2021?] Contra a integridade da Lei da Mata Atlântica e no Licenciamento Ambiental, onde há o risco da boiada passar sobre os instrumentos de participação social e transparência, como a necessidade de audiências públicas e estudos detalhados para empreendimentos e atividades de impacto. A pretensa “desregulamentação” não pode passar por cima desses preceitos Constitucionais e ameaçar ainda mais nossos patrimônios.
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Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima
Em um conjunto de múltiplas boiadas, provavelmente as mais tristes vieram com a Resolução Conama nº 500, do mês de outubro, que revogou as Resoluções nº 284/2001 (licenciamento da irrigação), 302/2002 (Áreas de Preservação Permanente no entorno de reservatórios artificiais) e 303/2002 (parâmetros, definições e limites de APPs). A reunião em que essa resolução foi votada foi muito triste e simbólica: mostrou que o Conama, órgão com histórico que marcou fortemente a construção da Política Nacional do Meio Ambiente, se transformou em uma arena de passar boiada. A Resolução nº 499, que flexibilizou as regras para o coprocessamento de resíduos com poluentes orgânicos persistentes em fornos rotativos de produção de clínquer, aprovada no mesmo dia, também é muito negativa.
[E que boiada que devemos ficar atentos em 2021?] Mantendo os comentários no Conama, temos de ter atenção para todas as reuniões do conselho em 2021, as perspectivas são bastante ruins. Preocupo-me com prováveis retrocessos no Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), entre outros temas.
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Adriana Ramos, assessoria do Instituto Socioambiental (ISA)
É muito difícil escolher uma coisa só, mas eu diria que uma das mais graves foi a resolução do Conama 500, que revogou as resoluções sobre áreas de preservação permanente, tanto pela forma, quanto pelo conteúdo. Mas felizmente ela foi suspensa pelo STF.
Assunto que merece atenção em 2021 para mim é a proposta do governo federal de abrir as terras indígenas para mineração e garimpo, que é um projeto de cunho colonial que está sendo vendido como alternativa para os povos indígenas, mas é exatamente a falta de alternativas para eles e com potencial de impacto ambiental imenso
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Angela Kuzack, diretora-executiva da Rede Pró-UC
2020 foi o ano em que mais uma vez o Parque Nacional do Iguaçu foi ameaçado pelo fantasma da estrada do colono, através de dois Projetos de Lei que, de forma muito irresponsável, não só defendem que o Parque Nacional do Iguaçu seja rasgado ao meio, como abrem precedente para que esse absurdo aconteça em outros Parques do Brasil.
Em 2021 haverá grande pressão no Senado, com o PL capitaneado pelo Senador Álvaro Dias, uma vergonha! Desde já nós avisamos: essa boiada não vai passar!
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Cláudio C. Maretti, especialista em Unidades de Conservação, ex-presidente do ICMBio
A proposta de fusão do Ibama com o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], com a desculpa de que os órgãos estão fracos e, portanto, a fusão seria melhor escolha. Essa proposta significa, na verdade, a extinção do ICMBio, com grande prejuízo para as unidades de conservação federais.
[E que boiada que devemos ficar atentos em 2021?] A mesma, que ainda não se concretizou.
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Maria Tereza Jorge Pádua, ambientalista e colunista de ((o))eco
A queima de metade do Pantanal. A autorização de mineração em reservas ou áreas indígenas
Pesca artesanal em Fernando de Noronha… Pior que tudo, colocar analfabetos para planejar e dirigir a área da conservação da natureza no Brasil. Em meu ponto de vista regredimos mais de meio século com a área ambiental e com a conservação e preservação da natureza.
Em 2021 [precisamos] dar real importância à área ambiental. Sair do faz de conta atual.
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Brenda Brito, pesquisadora do Imazon
No tema fundiário houve boiadas que foram interrompidas, algumas que estão em disputa e outras que passaram sem alarde. No primeiro caso, destaco a derrota do governo na tentativa de aprovar a Medida Provisória nº 910/2019, que perdeu a validade. Caso fosse aprovada pelo Congresso Nacional, representaria mais estímulo para ocupação e desmatamento de terras públicas, pois reforçaria a narrativa de que a lei sempre pode ser alterada para beneficiar quem se apropria ilegalmente do patrimônio fundiário dos brasileiros.
No segundo caso, uma boiada que ainda está em disputa é a Instrução Normativa nº 09 de abril de 2020 da Funai, que retirou restrições a imóveis privados sobrepostos a terras indígenas ainda não homologadas. Com a nova regra, esses imóveis podem receber uma declaração indicando que respeitam limites de terras indígenas, mesmo com sobreposição àquelas em processo de demarcação. Essa IN é objeto de ações judiciais pedindo sua suspensão e anulação em vários estados. Algumas dessas ações já possuem liminares determinando a suspensão, como no Mato Grosso e no Pará. Mas também há decisões favoráveis à manutenção da IN em Mato Grosso do Sul e no Paraná.
Finalmente, uma boiada que passou despercebida pela maioria foi a regulamentação da lei de terras no estado do Pará. O Decreto Estadual n.º 1.190 de novembro de 2020 detalha as regras da polêmica lei de terras do Pará, que teve uma tramitação de apenas 33 dias sem debate público em 2019. Apesar da versão final do decreto ter incluído algumas sugestões feitas por organizações da sociedade civil, as regras publicadas permitem que o estado continue emitindo títulos para imóveis em terra pública com desmatamento recente. Também não exige adesão ao programa de regularização ambiental antes da titulação em todos os casos. Em algumas situações, chega até a conceder mais dois anos após a titulação para que esse compromisso de recuperação de passivo ambiental seja feito. Além disso, não vedou a possibilidade de titular áreas sem atividade agrária implementada em imóveis ocupados após a aprovação da lei, o que pode estimular novas invasões de terra pública.
[E que boiada que devemos ficar atentos em 2021?] É provável que o governo federal proponha uma nova flexibilização da legislação fundiária em 2021, já que não obteve sucesso em aprovar a Medida Provisória nº 910/2019 no Congresso Nacional. Ao longo do segundo semestre deste ano, o governo indicou que publicaria um novo decreto com novas regras para regularização fundiária, o que não ocorreu. De fato, as mudanças incluídas na MP 910/2019 não poderiam ser feitas via decreto, pois implicavam, por exemplo, em ampliar o prazo de ocupação de terras públicas para anistiar a grilagem que ocorreu após 2011. Outra proposta era eliminar a vistoria prévia à titulação de médios e grandes imóveis, aumentando o risco de regularizar áreas em conflito.
No final de 2020, o governo publicou uma portaria prevendo parceria com municípios para apoio na regularização fundiária, mas com um conteúdo ainda muito genérico e sem efeito prático. Portanto, é possível que 2021 comece com uma nova Medida Provisória nesse tema. Com base na mobilização da sociedade brasileira que ocorreu em 2020 contra a grilagem de terras e a MP n.º 910/2019, podemos antecipar que haverá forte reação a mais uma tentativa de legalizar o roubo de terras públicas no país.
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Natalie Unterstell, especialista em clima
Para mim a boiada clássica que não passou era aquele despacho que tentava revisar a aplicação da Lei da Mata Atlântica. A boiada que passou e eu considero top 1 é aquela que travou as multas ambientais.
[E que boiada que devemos ficar atentos em 2021?] Ficaria de olho no Conama, pois há mais mais desregulação em vista como Revogação da Resolução 303/2002, que dispõe sobre APPs e nas portarias do MMA que dispõe sobre espécies ameaçadas de extinção.
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Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS)
O ano de 2020 foi marcado pelo enfraquecimento e desmonte das estruturas públicas voltadas à proteção da natureza. Os danos causados pelo incremento no desmatamento, queimadas, mineração em áreas protegidas dentre outras ações de grande impacto ambiental foram intensificados pela diminuição da fiscalização, menor autuação de multas, desmonte da legislação e pronunciamentos explicitamente voltados a incentivar ações criminosas de ataques contra áreas naturais. O Governo do Brasil assumiu o papel de inimigo do meio ambiente.
[E que boiada que devemos ficar atentos em 2021?] Os avanços na degradação do meio ambiente não estão sendo adequadamente contidos até o momento, mesmo considerando pressões vindas da sociedade e também de instâncias externas, dentre elas os próprios compradores de commodities brasileiras. 2021 pode representar o incremento das políticas de destruição da natureza vigentes, avançando ainda mais sobre áreas protegidas, remanescentes privados de relevância para a conservação, intensificando agressões ao meio ambiente de forma proposital e escancarada. Corremos o risco de gerar impactos de tamanha envergadura que não serão possíveis de reverter. Juntamente com os elevados custos econômicos e sociais inerentes ao processo inconsequente de desrespeito a necessidade de proteção da natureza.
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José Truda Palazzo Jr., ambientalista especialista em oceanos
Pra mim o mais grave é o Brasil existir. Depois disso, a liminar esdrúxula e criminosa do [ministro do Supremo Tribunal Federal] Kassio Nunes contra a lei gaúcha de pesca. Uma aberração.
[E o que temos que ficar de olho para 2021?] Acordo de Paris. E ver o que vai acontecer com as posições do Brasil rumo à CoP [Conferência das Partes].
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André Aroeira, biólogo, especialista em políticas públicas ambientais
Para mim foi a GLO [Garantia da Lei e da Ordem] que colocou o Conselho da Amazônia na coordenação dos trabalhos de fiscalização. Por dois motivos principais, mas não únicos: i) altíssimo recurso alocado de R$60 milhões mensais, recurso que a gestão ambiental federal não tinha e que poderia ser decisivo para operações e para o concurso público do Ibama e ICMBio, com sobras; e ii) submeteu planejamento e operação do ibama ao Exército, e não o oposto, que provavelmente permitiria ações mais bem planejadas e executadas. O Exército não sabe fazer fiscalização ambiental, não conhece o território e não sabe fazer a inteligência no rastreio de toda a cadeia. Essa fiscalização em 2020 virou um grande barata-voa e os resultados são inegáveis, a piora de 10% no ritmo do desmatamento, que já era crítico, e uma tragédia devastadora no Pantanal.
A boiada que me tira o sono para 2021 é o licenciamento do asfaltamento da BR-319. Esta é uma obra delicadíssima em uma região extremamente preservada da Amazônia e pode abrir um tapete vermelho para grileiros e saqueadores de recursos naturais em geral (madeira, garimpo) em uma região de floresta praticamente intacta. Além do agravamento de conflitos e exposição de povos indígenas a invasores. Se o licenciamento não for feito de maneira ponderada e com muito cuidado, seus benefícios de conectar Manaus ao restante do Brasil por rodovia serão sobrepujado pelos malefícios destas atividades ilegais, além de abrir perigosos precedentes para outras obras danosas que estão sendo planejadas por este governo, dentre rodovias, pontes, zonas de mineração e usinas hidrelétricas.
A BR-319 vem sendo apressada pelo governo Bolsonaro desde o início e pode se converter ainda em 2021 em um perigosíssimo precedente, para além de gerar impactos regionais irreversíveis ao longo de várias décadas – como as rodovias abertas pela ditadura militar.
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