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Bombardeiro furtivo norte-americano F35. É ele que conduz as bombas nucleares “táticas” B61, e que foi usado há poucas semanas, num exercício de ataque simulado da OTAN a alvos russos

Europa: quem prepara a guerra nuclear

A OTAN acusa a Rússia, mas seus exercícios de guerra e as falas de seus “falcões” revelam: o tabu antiatômico será rompido, se for para vencer Putin. No centro dos preparativos está a Alemanha, política e culturalmente rendida a Washington

Por Wolfgang Streeck

Bombardeiro furtivo norte-americano F35. É ele que conduz as bombas nucleares “táticas” B61, e que foi usado há poucas semanas, num
exercício de ataque simulado da OTAN a alvos russos

Por Wolfgang Streeck para a New Left Review | Tradução: Maurício Ayer

Em 17 de outubro, o chanceler alemão Olaf Scholz invocou seu privilégio constitucional sob o artigo n.º 65 da Constituição para “determinar as diretrizes” da política de seu governo. Os chanceleres raramente fazem isso, se é que chegam a fazê-lo; a sabedoria política diz que essa é a conta: três tentativas e você está fora. O que estava em questão era a vida útil das últimas três usinas nucleares da Alemanha. Como resultado da virada de Angela Merkel pós-Fukushima [acidente nuclear ocorrido no Japão em março de 2011], cujo objetivo foi atrair os Verdes para uma coalizão com seu partido, essas usinas estão programadas por lei para encerrar suas operações até o final de 2022. Com medo de acidentes e do lixo nuclear, e também de seus abastados eleitores de classe média, os Verdes, agora governando junto com o Partido Social-Democrata (SPD) e o Partido Democrático Livre (FDP), recusaram-se a abrir mão de seu troféu. O FDP, por outro lado, exigiu que, dada a atual crise energética, todas as três usinas – responsáveis ​​por cerca de 6% do fornecimento doméstico de eletricidade na Alemanha – fossem mantidas em operação pelo tempo necessário, ou seja, indefinidamente. Para encerrar a luta, Scholz emitiu uma ordem aos ministérios envolvidos, declarando formalmente como política do governo que as usinas continuem até meados de abril do próximo ano, par ordre du mufti, como diz o jargão político alemão. Ambos os partidos cederam, salvando a coalizão por enquanto.

Os Verdes – recentemente chamados de “o partido mais hipócrita, indiferente, mentiroso, incompetente e, a julgar pelos danos que causam, o partido mais perigoso que temos atualmente no Bundestag” pela indestrutível Sahra Wagenknecht – têm mais medo da energia nuclear do que as armas nucleares. Anestesiado pelo número crescente de companheiros verdes na mídia e hipnotizado por fantasias como Biden levando Putin para ser julgado pelo tribunal penal internacional de Haia, o público alemão se recusa a considerar os danos que a escalada nuclear na Ucrânia causaria, e o que isso significaria para o futuro da Europa e, aliás, da própria Alemanha (um lugar que muitos dos Verdes alemães não consideram particularmente digno de proteção). Com poucas exceções, as elites políticas alemãs, bem como sua panfletária grande imprensa, não sabem ou fingem não saber nada sobre o estado atual da tecnologia de armas nucleares ou o papel atribuído aos militares alemães na estratégia e tática nuclear dos Estados Unidos.

À medida que a Alemanha, tendo cruzado um ponto de inflexão (Zeitenwende), se declara cada vez mais pronta para ser a nação líder da Europa, sua política interna torna-se mais do que nunca uma questão de interesse europeu. A maioria dos alemães concebe a guerra nuclear como uma batalha intercontinental entre a Rússia (antiga União Soviética) e os Estados Unidos, com mísseis balísticos carregando ogivas nucleares cruzando o Atlântico ou, conforme o caso, o Pacífico. A Europa pode ou não ser atingida, mas como o mundo se arruinaria de qualquer maneira, não há necessidade de pensar sobre nada disso. Talvez com medo de ser acusado de Wehrkraftzersetzung – subversão do serviço militar, punível com pena de morte na Segunda Guerra Mundial – nenhum dos subitamente numerosos “especialistas em defesa” alemães parece disposto a confirmar que o que Biden chama de Armagedom é um futuro que pode se tornar uma realidade apenas após uma fase prolongada de guerra nuclear “tática” em vez de “estratégica” na Europa e, efetivamente, nos campos de batalha ucranianos.

Uma arma de escolha aqui é a bomba nuclear americana chamada B61, projetada para ser lançada de aviões de combate em concentrações militares no solo. Embora todos tenham jurado dedicar-se “ao bem-estar do povo alemão [e] protegê-lo de qualquer dano”, nenhum membro do governo alemão falará sobre que tipo de consequências o uso de uma B61 na Ucrânia poderá produzir; aonde os ventos provavelmente o levarão; por quanto tempo a área ao redor de um campo de batalha nuclear permanecerá inabitável; e quantas crianças com deficiência nascerão perto e longe dali, e ao longo de quantos anos – tudo para que a península da Crimeia possa permanecer ou se tornar novamente ucraniana. O que está claro é que, comparado à guerra nuclear, mesmo do tipo localizado, o acidente nuclear de 1986 em Chernobyl (que acelerou a ascensão dos Verdes na Alemanha) pareceria totalmente insignificante em seus efeitos. É notável até o momento a abstenção dos Verdes em pedir medidas de precaução para proteger a população da Alemanha e da Europa contra a contaminação nuclear – montando estoques de contadores Geiger ou pastilhas de iodo, por exemplo –, o que se imaginaria recomendável, ainda mais tendo passado pela experiência da covid-19. Cuidar do sono dos cães obviamente tem precedência sobre a saúde pública ou, nesse caso, a proteção do meio ambiente.

Não que “o Ocidente” não esteja se preparando para uma guerra nuclear. Em meados de outubro, a OTAN organizou um exercício militar chamado “Steadfast Noon”, descrito pelo Frankfurter Allgemeine (FAZ)como um “exercício anual de armas nucleares”. O exercício envolveu 60 aviões de combate de 14 países e ocorreu sobre a Bélgica, o Mar do Norte e o Reino Unido. “Enfrentando ameaças russas de usar armas nucleares”, explicou o FAZ, “a Aliança divulgou informações sobre o exercício de forma ativa e providencial, para evitar mal-entendidos em Moscou, mas também para demonstrar sua prontidão operacional”. No centro do evento estiveram os cinco países – Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica e Turquia (!) – que têm um “acordo de participação nuclear” com os EUA, que prevê que alguns dos seus caças transportem B61 americanos para alvos designados pelos Estados Unidos. Cerca de cem B61s estão supostamente armazenados na Europa, guardados por tropas americanas. A força aérea alemã mantém uma frota de bombardeiros Tornado dedicados à “participação nuclear”. Os aviões estão desatualizados, no entanto, e durante as negociações da coalizão era uma exigência inegociável da nova ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, que os Tornados fossem substituídos o mais rápido possível por 35 bombardeiros furtivos (invisíveis aos radares) F35 americanos. Eles agora estão sendo encomendados e provavelmente serão entregues em cerca de cinco anos, a um preço de 8 bilhões de euros, para desespero dos franceses, que esperavam ser deixados de fora do negócio. Estima-se que a manutenção e os reparos custem duas ou três vezes mais durante a vida útil dos aviões.

É importante observar precisamente do que se trata o “Steadfast Noon” (“Meio-dia firme”, o exercício militar nuclear anual da OTAN). Os pilotos aprendem a abater os aviões interceptadores do inimigo e, quando próximos o suficiente do alvo, realizam uma manobra complicada, o chamado “arremesso de ombro”. Aproximando-se a uma altura muito baixa, cada um com uma bomba presa em sua parte inferior, os aviões repentinamente invertem a direção fazendo um loop para a frente, liberando a bomba no ápice de sua subida. A bomba continua assim na direção original do avião, até cair em uma curva balística erradicando o que quer que estivesse na mira ao final de sua trajetória. Nesse momento, o avião já estará em um caminho supersônico de volta para casa, tendo evitado a onda provocada pela explosão nuclear. Para concluir com uma nota de conforto para seus leitores, o FAZ revelou que “bombardeiros estratégicos de longo alcance B-52” dos Estados Unidos, “projetados para mísseis nucleares que podem ser lançados de grandes altitudes”, também participaram do exercício.

Quem estiver disposto a fazer uma leitura a contrapelo dos pronunciamentos públicos da coalizão governista poderá reconhecer neles os vestígios de debates que acontecem nos bastidores, sobre a melhor forma de evitar que a Massa Mal-cheirosa fique no caminho do que pode estar avançando para cima deles. Em 21 de setembro, um dos editores-chefes do FAZ, Berthold Kohler, um linha-dura como nunca houve, observou que mesmo entre os governos ocidentais “o impensável não é mais considerado impossível”. Em vez de se deixarem chantagear, no entanto, os “estadistas” ocidentais precisam reunir “mais coragem… se os ucranianos insistirem em libertar todo o seu país”, uma insistência que não temos o direito de discutir. Qualquer “acordo com a Rússia às custas dos ucranianos” equivaleria a um “apaziguamento” e “traição aos valores e interesses do Ocidente”, os dois felizmente convergindo. Para tranquilizar os leitores que, no entanto, prefeririam viver por suas famílias do que morrer por Sebastopol – e que até então haviam sido informados de que a entidade chamada “Putin” é um louco genocida totalmente imune a argumentos racionais –, Kohler relata que em Moscou há suficiente medo do “Armagedom nuclear no qual a Rússia e seus líderes também queimariam” para o Ocidente apoiar ao máximo a visão de Volodymyr Zelensky [presidente da Ucrânia] sobre o interesse nacional ucraniano.

Foi, no entanto, apenas alguns dias depois que um dos redatores da equipe de Kohler, Nikolas Busse, anunciou abertamente que “o risco nuclear está crescendo”, apontando que “os militares russos têm um grande arsenal de armas nucleares táticas menores, adequadas para o campo de batalha”. A Casa Branca, de acordo com Busse, “alertou a Rússia por canais diretos sobre as graves consequências” caso os usasse. Se a tentativa americana de “aumentar os custos potenciais de Putin” teria o efeito desejado, entretanto, é algo incerto. “A Alemanha”, continua o artigo, “sob a pretensa proteção da estratégia de Biden, permitiu-se um debate incrivelmente frívolo sobre a entrega de tanques de guerra à Ucrânia”, referindo-se a tanques que permitiriam ao exército ucraniano entrar em território russo, ultrapassando o que é aparentemente o papel atribuído aos ucranianos na guerra por procuração americana com a Rússia e provavelmente provocando uma resposta nuclear: “Mais do que nunca, não se deve esperar que os Estados Unidos arrisquem sua cabeça em aventuras solo (Alleingänge) de seus aliados. Nenhum presidente americano colocará o destino nuclear de sua nação nas mãos dos europeus” (ao contrário, não se pode deixar de notar, os presidentes europeus colocam o destino de suas nações nas mãos dos americanos).

O artigo de Busse marcou o limite do que o establishment político alemão estava disposto a deixar as parcelas mais educadas da sociedade alemã saberem sobre os debates com os aliados do país e o que a Alemanha pode ter que suportar se a guerra continuar. Mas esse limite está mudando rapidamente. Mal se passou uma semana quando Kohler, expressando as mesmas dúvidas quanto à disposição dos Estados Unidos de sacrificar Nova York por Berlim, pediu explicitamente que a Alemanha adquirisse suas próprias bombas nucleares, algo que tem estado totalmente – e aparentemente de modo perene – fora dos limites do pensamento político considerado admissível na Alemanha. Embora a capacidade nuclear alemã, de acordo com Kohler, devesse oferecer uma precaução contra a imprevisibilidade da política interna americana e da estratégia global, também seria uma pré-condição para a liderança alemã na Europa independente da França e mais alinhada com a visão de mundo dos países do Leste Europeu, como como a Polônia.

A cidade de Frankfurt, Goethe observou certa vez sobre sua terra natal, “está cheia de esquisitices”. O mesmo pode ser dito hoje de Berlim e, na verdade, da Alemanha como um todo. Coisas bizarras estão acontecendo – e sua avaliação pública é rigidamente administrada por uma aliança de partidos de centro e da mídia, e apoiada em uma incrível medida por uma censura autoimposta na sociedade civil. Diante de nossos olhos, uma potência regional de médio porte, aparentemente governada democraticamente, está sendo transformada, e está se transformando ativamente, em uma dependência transatlântica das Grandes Máquinas de Guerra Americanas, da OTAN ao Estado-Maior Conjunto, do Pentágono à NSA e da CIA ao Conselho de Segurança Nacional. Quando, em 26 de setembro, os dois gasodutos Nord Stream foram atingidos por um enorme ataque subaquático, os poderes tentaram por alguns dias convencer o público alemão de que o perpetrador só poderia ter sido “Putin”, pretendendo demonstrar aos alemães que não haveria retorno aos bons e velhos tempos do gás. Logo ficou claro, no entanto, que isso forçava a credulidade até mesmo do mais crédulo dos súditos (Untertanen) alemães. Por que o chamado “Putin” deveria ter se privado voluntariamente da possibilidade, por menor que fosse, de atrair a Alemanha de volta à dependência energética, assim que os alemães estavam se tornando incapazes de pagar o preço assombroso do gás natural líquido americano? E por que ele não teria preferido explodir os oleodutos em águas russas, em vez das águas internacionais, estas últimas sendo as mais fortemente policiadas comparado a qualquer outra região marítima, exceto, talvez, o Golfo Pérsico? Por que arriscar que um esquadrão de tropas de choque russas, que sem dúvida teria sido considerável, fosse pego em flagrante, desencadeando um confronto direto com vários estados membros da OTAN sob o Artigo 5?

Na falta de uma (mesmo remotamente crível) “narrativa” – o novo termo no jargão educado para uma história fabricada com um propósito –, o assunto foi efetivamente arquivado, depois de não mais que uma semana. Dois dias após a explosão, um repórter solitário de um jornal local baseado na entrada do Mar Báltico observou o USS Kearsarge, um “navio de assalto anfíbio” capaz de transportar até 2 mil soldados, sair do Báltico em direção ao oeste, acompanhado por dois barcos de desembarque; uma fotografia de dois dos três poderosos navios chegou à internet. Ninguém na política alemã ou na mídia nacional prestou atenção, pelo menos não publicamente. Em meados de outubro, a Suécia, atualmente candidata à adesão à OTAN, anunciou que manteria os resultados de sua investigação do acontecimento para si mesma; o índice de segurança de suas descobertas era alto demais “para serem compartilhados com outros Estados como a Alemanha”. Pouco tempo depois, a Dinamarca também se retirou da investigação conjunta.

Quanto à Alemanha, em 7 de outubro, o governo teve que responder a uma pergunta de um membro do partido A Esquerda (Die Linke) no Congresso sobre o que sabia sobre as causas e os autores dos ataques ao gasoduto. Além de afirmar que os considerava “atos de sabotagem”, o governo alegou não ter informações, acrescentando que provavelmente também não viria a tê-las no futuro. Além disso, “após cuidadosa consideração, o Governo Federal chegou à conclusão de que mais informações não podem ser fornecidas por razões de interesse público” (em alemão, aus Gründen des Staatswohls, literalmente: “por razões de bem-estar do Estado”, um conceito aparentemente modelado em outro neologismo, Tierwohl, “bem-estar animal”, que no juridiquês alemão recente se refere ao que criadores de galinhas e porcos devem oferecer a seus animais para que suas práticas agrícolas possam ser consideradas “sustentáveis”). Isto, continua a resposta, porque “as informações solicitadas estão sujeitas às restrições da ‘Regra do terceiro interessado’, que diz respeito à troca interna de informações pelos serviços de inteligência” e, portanto, “afeta interesses de sigilo que requerem proteção de tal forma que o Staatswohl se sobrepõe ao direito parlamentar à informação, de modo que o direito dos deputados de fazer perguntas deve, excepcionalmente, ficar em segundo plano em relação ao sigilo do Governo Federal”. Que seja do conhecimento deste autor, não houve nenhuma menção a essa troca de mensagens na mídia alinhada ao Staatswohl.

Houve outros eventos sinistros desse tipo. Em um processo acelerado que durou apenas dois dias, o Bundestag, usando linguagem fornecida pelo Ministério da Justiça sob o comando do suposto partido liberal FDP, alterou o artigo n.º 130 do Código Penal, que torna crime “aprovar, negar ou diminuir (verharmlosen)” o Holocausto. Em 20 de outubro, uma hora antes da meia-noite, foi aprovado um novo parágrafo, oculto em um projeto de lei abrangente que trata dos detalhes técnicos da criação de registros centrais, que acrescenta “crimes de guerra” (Kriegsverbrechen) ao que não deve ser aprovado, negado ou diminuído. A coligação e a CDU/CSU votaram a favor da emenda, Die Linke e AfD contra. Não houve debate público. Segundo o governo, a emenda era necessária para a transposição para o direito alemão de uma diretiva da União Europeia de combate ao racismo. Com duas pequenas exceções, a imprensa deixou de noticiar o que não é senão um golpe de estado legal. (Duas semanas depois, o FAZ protestou que o uso do artigo n.º 130 para esse propósito era desrespeitoso em relação à natureza única do Holocausto.)

Pode não demorar muito para que o Promotor Federal inicie um processo legal contra alguém por comparar crimes de guerra russos na Ucrânia com crimes de guerra americanos no Iraque, “diminuindo” assim os primeiros (ou os últimos?). Da mesma forma, o Departamento Federal para a Proteção da Constituição pode em breve começar a colocar “redutores” de “crimes de guerra” sob observação, incluindo vigilância de suas comunicações por telefone e e-mail. Ainda mais importante para um país onde quase todo mundo na manhã seguinte à Machtübernahme [tomada de poder pelos nazistas em 30 de janeiro de 1933] saudou seu vizinho com Heil Hitler em vez de Guten Tag, será o que nos Estados Unidos é chamado de “efeito aterrorizante”. Qual jornalista ou acadêmico tendo que alimentar uma família ou desejando progredir em sua carreira correrá o risco de ser “observado” pela segurança interna como um potencial “redutor” dos crimes de guerra russos?

Também em outros aspectos, as margens do dizível estão se estreitando rápida e assustadoramente. Assim como na destruição dos gasodutos, os tabus mais fortes dizem respeito ao papel dos Estados Unidos, tanto na história do conflito quanto no presente. No discurso público admissível, a guerra na Ucrânia – e espera-se que seja chamada de “guerra de agressão de Putin” (Angriffskrieg) por todos os cidadãos leais – torna-se totalmente descontextualizada: não há história fora da “narrativa” de uma década meditação de um ditador louco no Kremlin sobre a melhor forma de acabar com o povo ucraniano, facilitada pela estupidez, combinada com a ganância, dos alemães que se apaixonaram por gás barato. Como este autor descobriu ao conceder uma entrevista à edição online de um semanário alemão de centro-direita, Cicero, e esta foi cortada sem qualquer aviso, entre as coisas que não devem ser mencionadas na sociedade alemã educada está a rejeição americana ao “Lar Comum Europeu” de Gorbachev, a subversão dentro dos Estados Unidos ao projeto de Clinton de uma “Parceria para a Paz” e o repúdio, ainda em 2010, da proposta de Putin de uma zona europeia de livre comércio “de Lisboa a Vladivostok”. Igualmente não mencionável é o fato de que, o mais tardar em meados da década de 1990, os Estados Unidos decidiram que a fronteira da Europa pós-comunista deveria ser idêntica à fronteira ocidental da Rússia pós-comunista, que também seria a fronteira oriental da OTAN, a oeste da qual não haveria qualquer restrição à permanência de tropas e sistemas de armas. O mesmo vale para os extensos debates estratégicos americanos sobre a “extensão da Rússia”, conforme documentado em artigos para discussão acessíveis ao público da RAND Corporation.

Mais exemplos do publicamente indizível incluem o acúmulo de armas historicamente sem precedentes por parte dos Estados Unidos durante a “Guerra ao Terror”, acompanhado pela rescisão unilateral de todos os acordos de controle de armas remanescentes com a antiga União Soviética; a implacável pressão americana sobre a Alemanha para substituir o gás natural russo pelo gás natural líquido americano após a invenção do fracking, culminando na decisão americana, muito antes da guerra, de fechar o Nord Stream 2, de uma forma ou de outra; as negociações de paz que antecederam a guerra, incluindo os acordos de Minsk entre Alemanha, França, Rússia e Ucrânia, negociados entre outros pelo então chanceler alemão, Frank-Walter Steinmeier, que se desfizeram sob pressão do governo Obama e seu enviado especial para relações EUA-Ucrânia, o então vice-presidente Joe Biden, coincidindo com uma radicalização do nacionalismo ucraniano (hoje Steinmeier continua confessando publicamente e se arrependendo de seus pecados passados ​​como pacifista, em linguagem que efetivamente o impede de considerar qualquer futuro regime de segurança europeu que não inclua uma mudança de regime na Rússia); e não menos importante, a conexão entre as estratégias de Biden na Europa e no Sudeste Asiático, especialmente os preparativos americanos para a guerra com a China.

Houve um vislumbre destes últimos quando o almirante Michael Gilday, chefe de operações navais dos EUA, em uma audiência perante o Congresso em 20 de outubro, deixou claro que os Estados Unidos tinham que estar preparados “para uma janela de 2022 ou potencialmente uma janela de 2023” para a guerra de Taiwan com a China. Apesar de toda a sua obsessão com os Estados Unidos, o fato de que é do conhecimento transatlântico comum que a guerra ucraniana é no fundo uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia escapa completamente ao público oficial alemão. As falas de nomes como Niall Ferguson ou Jeffrey Sachs alertando urgentemente contra a ameaça nuclear passam despercebidas; o primeiro em um artigo na Bloomberg, intitulado “Como a Segunda Guerra Fria poderia se transformar na Terceira Guerra Mundial”, um artigo que nenhum editor alemão de cabeça feita pelo Staatswohl teria aceitado.

Na Alemanha de hoje, qualquer tentativa de colocar a guerra ucraniana no contexto da reorganização do sistema estatal global após o fim da União Soviética e do projeto americano de uma “Nova Ordem Mundial” (o velho Bush) é suspeita. Aqueles que o fizerem correm o risco de serem tachados de Putinversteher [alguém que demonstra compreensão pelas razões de Putin] e convidados para um dos talk shows diários da televisão pública – por “falso equilíbrio” aos olhos dos militantes – para enfrentar uma armada de neoguerreiros de direita aos berros contra eles. No início da guerra, em 28 de abril, Jürgen Habermas, filósofo da corte dos Verdes, publicou um longo artigo no Süddeutsche Zeitung, sob o longo título “Tom estridente, chantagem moral: sobre a batalha de opiniões entre ex-pacifistas, um público chocado e um chanceler cauteloso após o ataque à Ucrânia”. Nele, o filósofo questionou o moralismo exaltado dos neobelicistas entre seus seguidores, expressando cautelosamente apoio ao que na época parecia ser uma relutância por parte do chanceler em se atirar de cabeça na guerra ucraniana. Por ter escrito isso, Habermas foi ferozmente atacado de dentro do que ele deve ter imaginado ser o seu clube, e permaneceu em silêncio desde então.

Quem eventualmente imaginou que a voz ainda potencialmente influente de Habermas pudesse ajudar nos esforços cada vez mais desesperados de evitar que a política alemã se fixe em definitivo em uma Vitória Final (Endsieg), a qualquer custo, na Ucrânia, ficou entregue ao líder do partido parlamentar SPD, Rolf Mützenich, um ex-docente universitário de relações internacionais. Mützenich tornou-se um personagem odiento da nova coalizão de guerra dentro e fora do governo, que tenta marcá-lo como uma relíquia de antes do ponto de virada (Zeitenwende), quando as pessoas ainda acreditavam que a paz era possível sem a destruição militar de qualquer “império do mal” que aparecesse no caminho do “Ocidente”. Em um artigo recente sobre o trigésimo aniversário da morte de Willy Brandt, escondido em um boletim social-democrata, Mützenich alertou sobre um iminente “fim do tabu nuclear” e argumentou que “a diplomacia não deve ser limitada pelo rigor ideológico ou por ensinamentos morais”. Devemos reconhecer que homens como Vladimir Putin, Xi Jinping, Viktor Orbán, Recep Tayyip Erdoğan, Mohammed bin Salman, Bashar al-Assad e muitos outros influenciarão o destino de seus países, seus bairros e o mundo por mais tempo do que nós gostaríamos. Será interessante ver por quanto tempo seus partidários, muitos deles jovens recém-eleitos deputados do SPD, conseguirão mantê-lo no cargo.

O que é surpreendente é quantos falcões da guerra saíram de seus ninhos nos últimos meses na Alemanha. Alguns aparecem como “especialistas” em Europa Oriental, em política internacional e nos militares, e acreditam ser seu dever ocidental ajudar o público a negar a realidade cada vez mais próxima de explosões nucleares em território europeu; outros são cidadãos comuns que de repente gostam de acompanhar batalhas de tanques na internet e torcem pelo “nosso” lado. Alguns dos mais belicosos pertenciam à esquerda, amplamente definida; hoje eles estão mais ou menos alinhados com os Verdes e, neste, emblematicamente representados por Annalena Baerbock, agora ministra das Relações Exteriores. Uma estranha combinação de Joana d’Arc e Hillary Clinton, Baerbock está entre os muitos chamados “jovens líderes globais” cultivados pelo Fórum Econômico Mundial. O que é mais característico de sua versão do esquerdismo é sua afinidade com os Estados Unidos, de longe o estado mais propenso à violência no mundo contemporâneo. Para entender isso, pode ser útil lembrar que a sua geração nunca vivenciou a guerra, nem a geração de seus pais; de fato, pode-se com segurança presumir que os membros masculinos dessa geração evitaram o alistamento militar alegando-se objetores de consciência, até que essa possibilidade fosse suspensa, principalmente sob pressão eleitoral. Além disso, nenhuma geração anterior cresceu tanto sob a influência do soft power americano, da música pop ao cinema e da moda a uma sucessão de movimentos sociais e modismos culturais, todos os quais foram pronta e avidamente copiados na Alemanha, preenchendo a lacuna causada pela ausência de qualquer contribuição cultural original dessa coorte de idade notavelmente epigonal (uma ausência que é eufemisticamente chamada de cosmopolitismo).

Olhando mais profundamente, como é necessário, o americanismo cultural (inclusive seu expansionismo idealista) promete um individualismo libertário que na Europa, ao contrário dos Estados Unidos, é considerado incompatível com o nacionalismo, sendo este último o anátema da esquerda verde. Isso deixa como única possibilidade remanescente de identificação coletiva um “ocidentalismo” generalizado, mal compreendido como um universalismo baseado em “valores”, que é de fato um americanismo ampliado imune à contaminação pela realidade da sociedade americana. O ocidentalismo, abstraído das necessidades, interesses e compromissos particulares da vida cotidiana, é inevitavelmente moralista; só pode viver em hostilidade (Feindschaft) com uma moral diferente – que a seus olhos torna-se imoralidade – não ocidental, que ele não pode deixar viver e, em última análise, deve deixar morrer. Não menos importante, ao adotar o ocidentalismo, esse tipo de nova esquerda pode, pela primeira vez, esperar não apenas estar à direita, mas também do lado vencedor, com o poder militar estadunidense prometendo a eles que desta vez, finalmente, eles podem não estar lutando por uma causa perdida.

Além disso, o ocidentalismo equivale à internacionalização, sob a robusta liderança estadunidense, das guerras culturais travadas em casa, inspiradas em modelos forjados nos Estados Unidos (embora lá a guerra possa estar prestes a ser perdida, pelo menos internamente). Na mente ocidentalizada, Putin e Xi, Trump e Truss, Bolsonaro e Meloni, Orbán e Kaczyński são todos iguais, todos “fascistas”. Com o significado histórico entregue à vida individualista e desenraizada na anomia do capitalismo tardio, há mais uma vez uma chance de lutar e até morrer, pelo menos pelos “valores” comuns da humanidade – uma oportunidade de heroísmo que parecia perdida para sempre nos horizontes estreitos e no paroquialismo limitado consagrado nas complexas instituições da Europa Ocidental pós-guerra e pós-colonial. O que torna esse idealismo ainda mais atraente é que a luta e a morte podem ser delegadas a procuradores, pessoas hoje, em breve talvez algoritmos. Por enquanto, nada mais se pede de você do que defender que seu governo envie armas pesadas aos ucranianos – cujo nacionalismo ardente até alguns meses atrás parecia nada menos que repulsivo para os cosmopolitas verdes –, enquanto celebra sua disposição de colocar suas vidas em risco a linha, em nome da causa não apenas de reconquistar a Crimeia para seu país, mas também em nome do próprio ocidentalismo.

Claro, para fazer as pessoas comuns se unirem a uma causa, “narrativas” eficazes devem ser elaboradas para convencê-las de que o pacifismo é uma traição ou uma doença mental. As pessoas também devem ser levadas a acreditar que, ao contrário do que dizem os derrotistas para minar o moral ocidental, a guerra nuclear não é uma ameaça: ou o louco russo acabará não sendo tão louco assim a ponto de seguir seus delírios, ou se ele for os danos permanecerão locais, limitados a um país cujo povo, como seu presidente nos tranquiliza na televisão todas as noites, não tem medo de morrer, nem por sua pátria nem, como diz Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, pela “família europeia” – que, quando o tempo estiver maduro, convidará a entrar, com todas as despesas pagas.

Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/europa-quem-prepara-a-guerra-nuclear/


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