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APREENSÃO NO TERMINAL GAÚCHO DE RIO GRANDE. FOTO: CARTA CAPITAL

Importação clandestina de lixo vira problema nos portos brasileiros

Os materiais chegam em contêineres ao Brasil e incluem de aparas de papel a material hospitalar usado, dejetos humanos e luvas cirúrgicas

APREENSÃO NO TERMINAL GAÚCHO DE RIO GRANDE. FOTO: CARTA CAPITAL

por René Ruschel via Carta Capital

No Brasil, a “passagem da boiada” pelas porteiras do meio ambiente parece ir muito além dos sonhos do ministro Ricardo Salles. Na gaúcha Rio Grande, o Ministério Público Federal concluiu, em fevereiro último, um complexo e demorado acordo que se arrastou por vários meses para solucionar outro problema gravíssimo e ainda pouco conhecido no País: a importação de lixo tóxico. Os materiais chegam em contêineres ao Brasil e incluem de aparas de papel a material hospitalar usado, dejetos humanos, luvas cirúrgicas, descarte de material para coleta em laboratórios, restos de alimentos, pneus, brinquedos… Um mix assustador.

Um fato recente expôs os riscos dessa importação. Em princípio, a operação parecia uma compra normal de aparas de papelão para reuso na produção de caixas para embalagem de alimentos, frutas e pequenas peças ou objetos frágeis. Embarcado no Porto de Everglades, em Fort Lauderdale, na Flórida, os 65 contêineres, com, aproximadamente, 1,1 mil toneladas, chegaram ao Porto de Rio Grande entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020. No desembarque, parte do material é vistoriada por scanners. Outra, aberta por amostragem. Neste caso, a fiscalização descobriu que certa quantia do produto importado estava misturada a resíduos tóxicos.

Segundo o procurador Daniel Luís Dalberto, a análise do material e das embalagens dos produtos indicou que o lixo tinha sido recolhido em shoppings, escolas, supermercados e hospitais de diversos estados da Costa Leste dos EUA. A importadora foi obrigada a dedetizar a carga antes da abertura dos contêineres, pois o material “continha insetos e organismos vivos em razão dos detritos orgânicos”. A empresa, legalmente constituída, teve seu nome mantido em sigilo como parte do acordo. “Os empresários alegaram que foram vítimas nessa negociação. Comunicamos as autoridades norte-americanas do ocorrido. Avisamos a Receita Federal e dois outros estados, cujos portos também recebiam mercadorias.” Condenados, os brasileiros foram multados em 706 mil reais. O material foi devolvido aos Estados Unidos.

Não foi a primeira vez. O desembarque de detritos clandestinos começou em 2009. À época, o jornalista e escritor gaúcho Diniz Júnior visitava o Porto de Hamburgo, na Alemanha, quando soube por ambientalistas europeus que uma enorme quantidade de lixo tinha sido encaminhada ao Brasil. “Quanto retornei, pelo instinto de jornalista, fui apurar na Receita Federal. O que ouvi me deixou estarrecido. Confirmaram a chegada de 89 contêineres com 1,4 tonelada de lixo tóxico e químico”. Os documentos da carga de importação faziam referência à compra de polímeros de etileno, mas a carga era de lixo hospitalar, resíduos de banheiro químico, baterias, preservativos e seringas usadas, remédios fora de validade e, pasme, fraldas sujas. Em 2011, aconteceu no porto pernambucano de Suape. A Receita Federal apreendeu 46 toneladas de “tecidos de algodão com defeito”. Eram lençóis descartados de hospitais dos EUA. No mesmo ano, a importadora havia trazido seis outros carregamentos que não foram retidos pela fiscalização.

Em 2012, na catarinense Itajaí, foram retidas 20 toneladas de lixo hospitalar da Espanha. No ano seguinte, outras duas apreensões, do Canadá e da Espanha, com 40 e 19 toneladas, respectivamente, com o mesmo material. Diniz tornou-se um garimpeiro de lixo tóxico. Durante oito anos pesquisou e resumiu o crime em um livro editado em 2016, Toma Lá Que o Lixo É Teu. “Toneladas de lixo não atravessam o Atlântico se não houver quem despache de um lado e receba de outro. No Brasil, durante algum tempo, acreditou-se na presunção de inocência dos importadores. Felizmente, agora, o Ministério Público, em parceria com a Receita Federal, tem agido com firmeza.”

O comércio de lixo tóxico tem se intensificado em todo o planeta. Embora em muitos países ele seja regulado de forma rígida, noutros as leis são frágeis. “O continente africano sempre foi o alvo desses negociantes. Principalmente, como depósito de lixo eletrônico. Agora, eles estão se voltando para o Brasil”, afirma Ana Angélica Alabarce, chefe da Unidade Técnica do Ibama em Santos, sede do maior porto comercial do Brasil. As negociações se dão pela internet. A Convenção da Basileia, discutida e concluída na Suíça em 1989, regula o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e Seus Depósitos em todo o mundo e reconhece o direito soberano de qualquer país definir as regras para a entrada e destinação, em seu território, de resíduos considerados ou definidos como perigosos em sua legislação nacional. O Brasil é signatário da convenção, que, além de coibir o tráfico ilegal, prevê a intensificação da cooperação internacional para uma gestão ambientalmente adequada. Existe um mercado legal de resíduos, materiais utilizados como insumos para a indústria cimenteira, de vidros e sucatas metálicas, além de plásticos e papel destinados à reciclagem.

Um dos obstáculos para conter o contrabando, afora o elevado fluxo de cargas e mercadorias nos portos brasileiros – e em todo o mundo –, é o aumento desenfreado da produção de lixo nas sociedades modernas. “O destino final dos rejeitos é uma grave questão que temos de enfrentar. Basta verificar o problema do plástico nos oceanos”, afirma Dalberto. A China, que importava e processava grandes quantidades de resíduos, fechou suas fronteiras nos últimos anos. Com isso, o mercado clandestino redirecionou a pressão para outros países, inclusive para o Brasil. “Por tudo isso, é provável que haja casos como estes em Rio Grande acontecendo em outros portos brasileiros. Será preciso que todos estejam atentos.”

Em meio ao debate, há quem defenda a ideia de que cada país deve armazenar o seu próprio lixo. Outros alegam que, em uma economia globalizada, é inevitável a livre circulação de mercadorias, inclusive de dejetos, desde que devidamente regulamentada. Para o jornalista Diniz Júnior, “o que se deve combater é o tráfico ilegal de resíduos, as máfias que dominam esse comércio, para não transformar os países pobres em verdadeiros lixões”.

Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/sustentabilidade/importacao-clandestina-de-lixo-vira-problema-nos-portos-brasileiros/


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