Empresa Helisul conseguiu mudança na licitação que favorece seus próprios negócios. Agora, pode faltar fiscalização na Amazônia.
por Rafael Neves, via The Intercept
UMA QUEDA DE BRAÇO entre técnicos do Ibama e sua fornecedora de helicópteros, a Helisul Táxi Aéreo, pode deixar o órgão ambiental sem aeronaves neste ano. A empresa, que hoje arrenda seis equipamentos ao instituto, tem contrato até fevereiro de 2021, mas a licitação para a nova locação está suspensa há quase cinco meses.
Sediada em Foz do Iguaçu, no Paraná, a Helisul tem quase 50 anos no ramo e presta serviços ao Ibama há três décadas. Para manter um contrato que deve render mais de R$ 300 milhões em cinco anos, a empresa pressionou o Ibama e até o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para mudar os termos da concorrência desenhada pelos técnicos do Centro de Operações Aéreas do instituto, o Coaer.
A licitação, que foi aberta no início de agosto e suspensa duas semanas depois, está sendo refeita nos moldes sugeridos pela empresa, mas ainda não foi publicada novamente. Com o atraso, o Ibama precisará de uma alternativa para ter helicópteros para combater queimadas e fiscalizar crimes ambientais na Amazônia a partir de março deste ano.Assine nossa newsletterConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entrada.Eu topo
No processo, a Helisul argumentou que os técnicos elaboraram a concorrência com “exigências infundadas”, que limitavam as opções das empresas a um único tipo de helicóptero, o AW119 Koala, importado da Itália e duas vezes mais caro que o atual. A companhia aérea garantiu que poderia oferecer o dobro de aeronaves, oito em vez de quatro, se o Ibama aceitasse outro modelo: o que ela própria já fornece.
Durante o impasse, dois chefes do Coaer deixaram o cargo. O primeiro foi demitido no final de julho, depois de um longo atrito com a diretoria, e o segundo pediu demissão com dois meses no cargo. Em setembro, depois da última troca de comando, a equipe de funcionários que construiu a licitação por quase dois anos foi substituída.
Em 13 de agosto, a empresa paranaense mandou e-mail ao Ibama avisando que havia levado a Salles sua proposta de alteração da licitação. No mesmo dia, o diretor de proteção ambiental do órgão, Olímpio Magalhães, mandou suspender a concorrência devido a manifestações de cinco empresas. Quatro delas pediam esclarecimentos ou sugeriam mudanças pontuais no edital, mas só a Helisul afirmava que a aeronave pedida pelo Ibama era inviável.
‘Duplicando a eficiência’: pedido sugere a adoção dos helicópteros que a empresa já fornece.
Uma semana depois, Magalhães mandou a equipe técnica refazer o orçamento prevendo oito helicópteros do tipo que a Helisul já fornece. Em resposta, duas concorrentes questionaram a mudança brusca de planos do Ibama. No final de setembro, o número foi reduzido para seis aeronaves, com menos capacidade do que as desejadas pelos técnicos. Depois das reviravoltas, o Ibama pediu que as empresas enviassem uma nova proposta de preço até o dia 11 de dezembro.
Mas a nova equipe técnica, que agora é chefiada por um bombeiro do Distrito Federal, ainda terá que analisar as propostas e reabrir a licitação. Isso a menos de dois meses do fim do prazo do contrato atual, que já foi prorrogado por um ano e não pode mais se estender, já que atingiu o prazo máximo previsto pela lei.Empresa alegou que Ibama poderia fazer ‘fazer mais com menos’ com os helicópteros que ela fornece.
Perguntamos ao Ibama por que o órgão desprezou tão rapidamente os termos da licitação elaborada pelos técnicos – e aprovada tanto pela presidência do órgão como por Salles – para abraçar a proposta da Helisul. Também questionamos se o ministro, que foi procurado pela empresa, teve algum papel nessa mudança.
O órgão negou qualquer interferência de Salles no processo e afirmou que trata o assunto “de forma técnica e na defesa do interesse público”, mas não explicou o motivo das decisões. Também não esclareceu se estima um prazo para a reabertura do pregão e se existe um plano B para manter os helicópteros no ar caso o contrato não seja assinado a tempo.
À Helisul, questionamos se a abordagem a Salles não foi uma tentativa de interferência política para fazer valer sua preferência na licitação, e se a reviravolta não significou uma vantagem da empresa sobre as concorrentes.
Em nota, a empresa afirmou que “jamais teve acesso ou interferência em processo de elaboração de qualquer edital de licitação que disputa” e que o e-mail enviado ao Ibama e a Salles foi uma mera “análise técnica”. A Helisul destacou, ainda, que toda a comunicação com o Ibama foi feita de forma institucional e “calcada no interesse público”.
‘Direcionamento explícito’
A licitação foi aberta no dia 4 de agosto. Cinco empresas enviaram dúvidas e reclamações ao Ibama logo em seguida, mas nenhuma foi tão incisiva quanto a Helisul. Em e-mail enviado no dia 12, a empresa acusou o Coaer de ter feito um “direcionamento explícito” no edital para a AW119 Koala, o que complicava a vida das empresas.
O pedido original do Ibama não nomeava um helicóptero específico, mas os empresários já sabiam desde 2019 que apenas o modelo, fabricado na Itália pela marca Leonardo, poderia atender à demanda. O problema é que o fornecedor, àquela altura, estava dedicado a uma grande encomenda da Marinha dos Estados Unidos e avisou que levaria mais de um ano para entregar aeronaves novas aos clientes no Brasil.
No e-mail enviado ao Ibama, que a Helisul também fez chegar a Salles, o superintendente da empresa Humberto Biesuz tentou dar o caminho das pedras ao Ibama: disse que o órgão poderia “fazer mais com menos” se optasse pela marca Airbus, que a empresa já fornece ao Ibama.Três servidores do Ibama dizem que a licitação está praticamente ganha para a Helisul.
Os técnicos rebateram. Em nota emitida no dia 14, afirmaram que a Helisul ignorava as necessidades de fiscalização do Ibama e insinuaram que a sugestão de aumento de aeronaves era um plano para lucrar mais. “Do ponto de vista da contratada [a Helisul], que receberia por aeronave e horas de voo, faz sentido, porém, para este contratante público, não seria a solução adequada”, diz a nota assinada por três servidores.
O Ibama nega que Salles tenha feito qualquer interferência na licitação. Mas o fato é que a posição da Helisul prevaleceu: o helicóptero desejado pelos técnicos foi esquecido, e o órgão mandou a unidade técnica fazer um novo pedido conforme a sugestão da empresa. A medida provocou a reclamação de duas concorrentes nos autos do processo.
A ordem partiu do diretor de Proteção Ambiental, Olímpio Magalhães. Trata-se de um coronel da reserva da Polícia Militar cuja nomeação, ao lado de outros ex-policiais com cargos no Ibama, foi considerada irregular pelos técnicos do Tribunal de Contas da União, por falta de qualificação. O caso ainda será julgado pela corte.
Em atividade desde 1972, a Helisul tem um histórico de proximidade com o poder, especialmente no Paraná. Em 2015, o ex-governador paranaense Beto Richa e Eloy Biesuz, um dos sócios da empresa, foram condenados a indenizar o governo estadual em R$ 2 milhões pela contratação de um avião e de um helicóptero sem licitação em 2011.
Três servidores do Ibama avaliam, em condição de anonimato, que a licitação está praticamente ganha para a Helisul. Na última consulta de preços, em novembro, eles apresentaram um orçamento mais baixo do que todos os concorrentes. Em 25 de novembro, a empresa informou ter comprado mais duas aeronaves da marca Airbus – o mesmo modelo que quer empurrar para o Ibama.
Cobertor curto
O helicóptero é uma ferramenta fundamental para fiscalizar crimes ambientais em um território do tamanho do Brasil. O contrato de arrendamento das aeronaves é, de forma disparada, o mais valioso do Ibama: rendeu R$ 302 milhões à Helisul de 2010 a 2015 e renderá mais R$ 266 milhões até fevereiro.
Prevendo um processo demorado e complexo, o Coaer começou a preparar a atual licitação ainda no governo Temer, em novembro de 2018. Depois de pedir sugestões ao Prevfogo, unidade que combate incêndios, e à Coordenação-geral de Emergências Ambientais, a equipe concluiu que a aeronave atual está defasada e precisa ser trocada por um modelo maior e mais rápido.
Em maio de 2019, o Coaer chamou os empresários interessados para uma reunião e apresentou seus planos. Em julho, por e-mail, pediu a 12 empresas uma estimativa de preço. A partir das simulações, os técnicos calcularam que o contrato custaria R$ 82,56 milhões por ano para seis helicópteros: cinco comuns e um bi-turbina, uma demanda dos fiscais do órgão para operações em alto-mar.Redução da frota ‘impactará de maneira considerável’ a capacidade do Ibama na Amazônia.
Com o passar dos meses, porém, a realidade orçamentária deixou o pedido mais humilde. Primeiro, abriram mão do bi-turbina e o valor baixou para R$ 60,5 milhões anuais. Já em maio de 2020, quase um ano depois, o cálculo foi refeito mantendo as cinco aeronaves, mas o preço saltou para R$ 73,4 milhões, principalmente devido à alta do dólar.
No final de junho, contudo, o Ministério do Meio Ambiente mandou avisar que o orçamento do Ibama para 2021 será de apenas R$ 210 milhões (uma queda de 21% em relação a 2020) e que, desse montante, só R$ 88,4 milhões caberiam à Diretoria de Proteção Ambiental, que cuida da fiscalização e do combate ao fogo. Ou seja, os R$ 73,4 milhões previstos para os helicópteros comeriam, sozinhos, 83% de todo o orçamento anual da diretoria. Era impraticável.
Depois de tentar, sem sucesso, convencer a chefia a lutar por um aumento na fatia do orçamento devido à importância dos helicópteros, os técnicos refizeram os cálculos para apenas quatro aeronaves, duas a menos do que hoje. Mas deixaram um alerta: a redução da frota “impactará de maneira considerável a capacidade operacional do Ibama, em especial nas ações na Amazônia Legal”.
Mas não houve conversa: a estimativa foi fechada em quatro helicópteros, por R$ 63,9 milhões ao ano, e Salles autorizou a licitação em 29 de julho de 2020. Cinco dias antes, o chefe do Coaer, Everton Almada Pimentel, foi demitido do cargo e substituído por Júlio César de Andrade Rocha, um capitão de Mar e Guerra da Marinha.
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