Por Rubens Valente, no UOL
A principal organização ianomâmi, em Roraima, denunciou ao Ministério da Saúde e ao MPF (Ministério Público Federal) suposto desvio de vacinas contra a covid-19, em troca de ouro, para garimpeiros que operam ilegalmente dentro da terra indígena.
A Hutukara Associação Yanomami apontou que 26 mil doses da vacina chegaram em janeiro a Roraima para os indígenas da terra indígena ianomâmi, mas ainda há diversas aldeias não vacinadas e apenas dois polos de saúde, dos 37 existentes, alcançaram a meta de 100% de vacinação. Segundo a associação, até o dia 22 de março apenas 29% dos indígenas haviam recebido as duas doses da vacina.
De acordo com as lideranças indígenas, os garimpeiros também espalham fake news para assustar os indígenas e evitar que usem os imunizantes.
Ao mesmo tempo, um deputado do MDB que preside a comissão de saúde da Assembleia Legislativa de Roraima sugeriu, no final de março, uma “redistribuição” das vacinas “destinadas aos indígenas aldeados, mas que estão paradas na câmara fria do Programa Nacional de Imunização do governo do Estado”, segundo texto divulgado no site da Assembleia na internet no dia 24 de março.
De acordo com levantamento da Rede Pró-YY (Pró-Yanomami e Ye’kwana) realizado no início de março, a covid-19 já havia causado 21 mortes na terra indígena. Outros 13 óbitos eram considerados suspeitos e mais 10 estavam em investigação.
O território ianomâmi, maior terra indígena em extensão no país, na qual vivem mais de 26 mil indígenas, está invadido por mais de 20 mil garimpeiros, segundo os indígenas, ou 3,5 mil, de acordo com um número apresentado no ano passado pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão. O general da reserva argumentou, na ocasião, ser “complexo” retirar os invasores. A denúncia sobre o ataque ao território indígena já chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que notificou o governo brasileiro a tomar providências.
Na carta dirigida no último dia 8 ao secretário especial de Saúde Indígena, em Brasília, vinculado ao Ministério da Saúde, Robson Santos da Silva, a Hutukara disse que “é inadmissível que, em meio à insistente piora nos índices de saúde das comunidades indígenas da Terra Indígena Ianomâmi em plena pandemia da covid-19, o órgão responsável pelo atendimento da saúde indígena tenha seus recursos desviados para atendimento de não indígenas que trabalham no garimpo ilegal”.
Os indígenas apresentaram o nome de pelo menos uma técnica de enfermagem de um polo base do DSEI-Y (Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami) que estaria aplicando vacinas em garimpeiros “em troca de pagamento em ouro”. O UOL apurou que a funcionária já teria sido afastada do trabalho na região, mas a assessoria de imprensa do ministério, em Brasília, não confirmou nem negou a informação.
Ministério diz que vacinou 56% de indígenas em RR com duas doses
Além do caso da servidora, que teria ocorrido no polo de Homoxi, os indígenas denunciaram situação similar no polo de Uxiu. Os desvios não se resumem às vacinas, de acordo com a denúncia.
“É comum a queixa por parte dos ianomâmis de que os materiais e medicamentos destinados à saúde indígena estão sendo desviados para atendimento aos garimpeiros. Em julho de 2020, já havia sido encaminhado aos órgãos aqui endereçados o depoimento de uma ianomâmi da comunidade de Kayanau queixando-se da piora no estado da saúde em sua comunidade e mencionando o desvio de medicamentos por um funcionário do DSEI-Y que atendia no polo base local. Tal prática, recorrente, não só prejudica o atendimento regular dos indígenas, que já sofrem com a falta de materiais medicamentos nos polos bases, como configura crime contra a administração pública na modalidade de peculato (artigo 312 do Código Penal)”, diz a carta subscrita pelo vice-presidente da Hutukara, Dário Vitório Kopenawa Yanomami, filho do líder indígena Davi Kopenawa.
A organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental) informou, a partir de relatos dos indígenas, que a disseminação de notícias falsas também é uma preocupação para as lideranças ianomâmis. Há relato de que nove aldeias se recusaram a vacinar seus indígenas porque foram “influenciadas por mentiras espalhadas pelos garimpeiros”. A principal mentira é que a vacina seria uma ação do governo para matar os indígenas.
Dário disse ainda ao ISA que alguns polos de saúde na terra indígena estão fechados, “as comunidades não têm profissionais de saúde, atendimento ou teste rápido”.
De acordo com a Hutukara, a degradação da saúde dos indígenas vem se acentuando, com a morte de 22 crianças nas comunidades de 2020 até o início de 2021.
Em nota pública, o CIR (Conselho Indígena de Roraima) repudiou a tentativa da Assembleia Legislativa de “redistribuir” parte das vacinas destinadas aos 80,7 mil indígenas que vivem no Estado. O CIR disse que as doses estão sendo aplicadas “conforme o planejado, bem como as campanhas sendo realizadas”.
“Não negociamos nossos direitos, antes de tudo, as organizações indígenas e instituições de saúde representativas têm o direito de ser consultados sobre qualquer decisão tomada referente ao que vem em nome da população indígena, conforme art. 6º da convenção da OIT [Organização Internacional do Trabalho]”, diz a nota do CIR.
Em nota à coluna, a assessoria de imprensa da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) afirmou: “O Ministério da Saúde já distribuiu doses suficientes para a imunização de 100% dos indígenas aldeados, que fazem parte dos grupos prioritários para a vacinação contra a covid-19 – 74% já foram imunizados com a primeira dose e 56% com a segunda. Os indígenas no contexto urbano ou rural serão imunizados pelos serviços municipais ou estaduais de saúde, de acordo com cronograma de cada local. As equipes do Ministério da Saúde buscam ativamente as pessoas inclusas no público-alvo para a vacinação, se deslocando de todas as formas possíveis até as aldeias, e seguem dialogando com as lideranças locais para garantir a imunização”.
O ministério não se manifestou sobre a denúncia de venda de vacinas por ouro aos garimpeiros. Sobre os garimpos, o ministério disse que as dúvidas deveriam ser dirigidas à Polícia Federal.
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Imagem: Devastação causada pela invasão de garimpeiros à Terra Indígena Yanomami, em Roraima, registrada em maio de 2020. Foto: Chico Batata/Greenpeace
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