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Barra Grande: hidrelétrica gaúcha abastece mineradoras

“Infelizmente, os atingidos são vistos como pessoas que devem ser retiradas por conta da construção da barragem. Além disso, não é feito um acompanhamento dessas famílias após o reassentamento”, afirma o biólogo Eduardo Luis Ruppenthal.

Parte do projeto hidrelétrico do período militar, a hidrelétrica de Barra Grande foi construída entre 2001 e 2005 nos municípios de Anita Garibaldi e Pinhal da Serra, na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Com a promessa de trazer desenvolvimento para os municípios da região sul do Estado, a hidrelétrica transformou completamente o modo de vida das famílias, especialmente dos agricultores.

Seis anos após a conclusão das obras, o biólogo Eduardo Luis Ruppenthal visitou as famílias da região e averiguou que, ao mudarem para o reassentamento rural coletivo, os agricultores deixaram de ter acesso a recursos naturais e tiveram de se adaptar a outra forma de agricultura para sobreviverem. “Eles são obrigados a trocar a cultura de subsistência pela cultura mecanizada, quase empresarial, porque nos reassentamentos não é possível manter a antiga forma de roça. (…) A agricultura passa a ter outra lógica e isto faz com que esses agricultores fiquem endividados. Para pagarem as dívidas, eles voltam sua produção para o mercado. Inclusive, algumas famílias se especializam tanto para o mercado que passam a comprar muitos dos alimentos que consomem”, relata.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, Ruppenthal esclarece que a energia gerada por Barra Grande atende especialmente aos interesses das empresas mineradoras que exportam minério in natura para o exterior. “Toda essa energia é destinada para as unidades mineradoras, principalmente as que estão em Minas Gerais e Poço de Caldas”, informa.

Eduardo Luis Ruppenthal é biólogo e mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que contexto histórico foi construída a barragem Barra Grande, no Rio Grande do Sul? Quais foram os argumentos que justificaram a construção desse empreendimento?

Eduardo Luis Ruppenthal – Barra Grande, assim como as demais barragens construídas no Brasil, é um projeto da ditadura militar. Todas as barragens foram planejadas naquele contexto em que o regime militar tinha um planejamento hidrelétrico para o Brasil no sentido de aumentar a produção de energia e nada mais. Questões ambientais e sociais não foram colocadas na pauta. Barra Grande foi projetada em 1980. Porém, por causa da crise econômica ocorrida na época, a hidrelétrica não foi construída naquele momento. O projeto foi retomado em 1995, no primeiro governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a construção da hidrelétrica começou, de fato, em 2001, no final de seu segundo mandato.

É interessante perceber nesse processo que, no anos 1980 e 1990, o Estado era responsável pela construção da barragem por meio da Eletrosul – a empresa do sul do país que responde à Eletrobras em nível nacional. No final dos anos 1990, o sistema elétrico do Brasil foi privatizado, e isto fez com que as empresas privadas recebessem a concessão para construir as barragens e administrá-las. Portanto, Barra Grande foi construída por um consórcio constituído pelas empresas Alcoa, Camargo Corrêa e DME Energia, e a hidrelétrica é administrada pela Energética Barra Grande S/A (Baesa). A hidrelétrica foi construída entre 2001 e 2005.

Nesses quatro anos, Barra Grande foi um caso emblemático, porque trouxe à tona a questão do licenciamento ambiental no Brasil e porque as investigações demonstraram que houve uma fraude no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da hidrelétrica. A fraude consistiu na omissão da existência de florestas na região. No estudo de impacto ambiental, as florestas eram definidas como milhares de hectares de capoeira, quando, na verdade, existia uma mata virgem de araucárias. Esta fraude só foi descoberta em 2004, quando a Baesa pediu autorização do Ibama para cortar a vegetação nativa. A empresa entrou em contradição. Se, de acordo com o relatório, havia apenas capoeira na região, como seria possível cortar a vegetação? Quando o Ibama verificou a área, percebeu que toda a região alagada era constituída por uma mata primária.

IHU On-Line – Na década de 1980 havia preocupação com o impacto social e ambiental gerado pela construção das barragens? Algo mudou no conceito ambiental desde que a barragem foi projetada até o ano em que Barra Grande foi construída?

Eduardo Luis Ruppenthal – Logo após a redemocratização, iniciou-se no Brasil um processo de discussão sobre as questões ambientais e sociais geradas pelas hidrelétricas, graças à mobilização das famílias atingidas. Na década de 1980, em função do desejo de redemocratização, havia bastante efervescência política, e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) se constituiu ao reivindicar os direitos dos atingidos pela hidrelétrica de Machadinho, que está localizada entre Piratuba (em Santa Catarina) e Maximiliano de Almeida (no Rio Grande do Sul).

O Relatório de Impacto Ambiental (Rima) surgiu com a política ambiental de meio ambiente em 1981, e com as primeiras resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Ele advertia que as grandes obras e empreendimentos, não só as hidrelétricas, mas também estradas e termoelétricas, precisavam de um estudo de impacto ambiental.

Mobilizações

Em relação às questões sociais, era difícil contabilizar o percentual de pessoas atingidas porque, para as empresas, no início dos anos 1980, eram considerados atingidos apenas os proprietários de terras. Só que naquela região da bacia do Uruguai existiam, e ainda existem, muitos agricultores ribeirinhos que não são proprietários de terras e que foram atingidos. Como, primeiramente, eles não foram reconhecidos pelo setor elétrico, organizaram-se para reivindicar seus direitos. Assim, o conceito de “atingido” foi mudando conforme aumentaram as mobilizações.

De certa forma, hoje o setor elétrico tenta incorporar quem é atingido e, a partir dos anos 1990, passou a reconhecer como atingido todas as pessoas que tiveram suas áreas alagadas e as que foram atingidas por causa do alagamento das terras. No caso de Barra Grande, em 2001, somente 800 famílias foram reconhecidas. No final da construção da hidrelétrica, em 2005, em função das mobilizações sociais, 1.516 famílias foram consideradas atingidas.

IHU On-Line – O que as famílias relatam sobre a construção da barragem e sobre os impactos ambientais, sociais e econômicos que elas sofreram?

Eduardo Luis Ruppenthal – Na minha dissertação, procurei observar qual era a situação das famílias seis anos após a construção da hidrelétrica de Barra Grande. Antes de a construção ser iniciada, as famílias já tinham uma sensação de incerteza em relação ao futuro. Isto porque aquelas que seriam reconhecidas e indenizadas não sabiam aonde iam morar: não sabiam se ficariam no meio rural, na cidade; não tinham a informação se elas voltariam para os seus municípios de origem ou se migrariam para outro município.

As famílias também relataram os problemas gerados em função da construção da barragem, pois, como se percebe no Brasil inteiro, milhares de trabalhadores se instalam nos canteiros de obras, modificando o cotidiano da região. Dos nove municípios atingidos pela hidrelétrica de Barra Grande, Pinhal da Serra, do lado do Rio Grande do Sul, e Anita Garibaldi, do lado catarinense foram os que sofreram maior impacto. Estes municípios têm historicamente um déficit enorme em relação aos serviços públicos como saúde, educação, segurança, infraestrutura de estradas. A vinda de milhares de trabalhadores e a instalação de maquinários influenciaram na rotina da cidade e os serviços sociais ficaram sobrecarregados.

Os impactos sociais após a construção

Com a construção das hidrelétricas, promete-se o desenvolvimento para a região. Por isso, de um lado, a população fica ansiosa e os representantes políticos e econômicos também. É uma promessa bem vendida de que, com as hidrelétricas, as cidades terão mudanças significativas.

Durante a construção de Barra Grande, havia mais de dois mil trabalhadores e, atualmente, apenas 24 deles são necessários para manter a hidrelétrica funcionando. O que se viu em Barra Grande é que muitas pessoas que antes trabalhavam como agricultores ficaram desempregadas com o término da obra. Então existe um êxodo não só rural, mas também urbano, porque muitos habitantes mudaram de uma cidade para outra maior.

IHU On-Line – Como ocorreu o processo de reterritorialização e reassentamento das famílias rurais atingidas pela construção da barragem Barra Grande? Quais foram as consequências vividas pelos diferentes grupos socioculturais?

Eduardo Luis Ruppenthal – As pessoas que moravam na região plantavam na roça e não usavam fertilizantes. A terra era muito fértil e eles plantavam milho e feijão. Inclusive, essa era a região que mais cultivava feijão no Rio Grande do Sul. Essas famílias também tinham acesso a recursos naturais, como água – pois todas as residências tinham poço artesiano –, lenha para aquecer suas residências, já que esta é uma das regiões mais frias do Brasil. Os agricultores também cultivavam pinhão, frutas nativas e tinham acesso ao rio, onde pescavam e lavavam roupas.

Mudanças

Ao mudarem para um reassentamento rural coletivo, distante do vale, eles deixaram de ter acesso aos recursos que mencionei e passaram a pagar por diversos serviços. Por exemplo, a água no reassentamento passa a ser encanada e há cobrança de uma taxa mensal. Antes, eles tinham acesso a lenha no seu próprio quintal, mas no reassentamento, a lenha não está disponível. Então, muitas famílias são obrigadas a comprá-la. Essas famílias tinham o hábito de ascender o fogão à lenha para aquecer a casa, para esquentar a água do chimarrão e para cozinhar. Nos reassentamentos, esse modo de vida não é possível. Culturalmente, essas mudanças são impactantes: eles são obrigados a trocar a cultura de subsistência pela cultura mecanizada, quase empresarial, porque nos reassentamentos não é possível manter a antiga forma de roça, pois ela passa a ser mecanizada com a utilização de tratores, por exemplo. Eles são obrigados a utilizar agrotóxicos e a comprar sementes – muitos agricultores sequer sabiam que precisariam comprar sementes. A agricultura passa a ter outra lógica, e isso faz com que esses agricultores fiquem endividados. Para pagar as dívidas, eles voltam sua produção para o mercado. Inclusive, algumas famílias se especializam tanto para o mercado que passam a comprar muitos dos alimentos que consomem.

Outro problema dos reassentamentos é o fato de o lote ser limitado; eles têm em torno de 14 a 20 hectares. Muitas vezes, as terras desses lotes não são tão férteis, e, portanto, nem todo lote pode ser aproveitado. O feijão, que era produzido em toda a região, foi deixado de lado, pois outros cultivos são priorizados, tais como a soja e o milho.

A paisagem local também foi atingida na medida em que as florestas e as árvores, muito presentes antes da construção da hidrelétrica, foram destruídas. Como a região está desmatada, o frio é muito mais intenso. Portanto, há uma mudança significativa na temperatura. As pessoas que moram proximamente ao lago dizem que a cerração é mais intensa hoje, o que os impede de trabalhar na roça.

IHU On-Line – Os municípios se beneficiaram de alguma maneira com a barragem Barra Grande?

Eduardo Luis Ruppenthal – Todo mês a empresa que administra Barra Grande tem de pagar royalties para os municípios. O valor dos royalties é calculado em cima da energia produzida. Então, em meses de seca, a produção é baixa ou não se produz quase nada. Nesse caso, diminui também a quantidade de royalties pagos. Entrevistei os prefeitos, secretários, vereadores e lideranças políticas da região para saber como avaliam o retorno econômico da barragem. Alguns dizem que ela trouxe benefícios, mas outros são mais reticentes. No caso de Anita Garibaldi, por exemplo, antes da construção da barragem, o município tinha mais de dez mil habitantes e recebia o fundo federal de participação dos municípios, distribuído pelo governo. Após a construção da barragem, a pequena cidade diminuiu o número de habitantes e passou a receber menos dinheiro do governo federal.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Eduardo Luis Ruppenthal – Diversos atores sociais fizeram um Pacto de Ajustamento de Conduta solicitando que o Estado brasileiro comprasse uma área de seis mil hectares – mesma extensão da área alagada para construir Barra Grande – a fim de doar às populações que foram atingidas pela hidrelétrica. A proposta é que essa área estivesse acima de Barra Grande, no Rio Pelotas. Entretanto, o governo não quer doar essa área porque, nesse espaço, querem construir a hidrelétrica de Paiquerê. O mesmo consórcio que construiu Barra Grande tem interesse em construir Paiquerê. Por causa da pressão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo não quer destinar dinheiro para comprar essa área.

Conclusões

Uma das conclusões do meu trabalho é que, infelizmente, os atingidos são vistos como pessoas que devem ser retiradas por conta da construção da barragem. Além disso, não é feito um acompanhamento dessas famílias após o reassentamento. Esta situação se mantém no Brasil todo.

Além disso, a energia oriunda dessas hidrelétricas não é utilizada pela população. Com a privatização do setor elétrico, empresas como a Alcoa – que é uma das maiores mineradoras do mundo – conseguem produzir a sua energia. Atualmente, apenas a Alcoa usa a energia de quatro hidrelétricas do Brasil: Barra Grande, Machadinho, Estreito e Serra do Facão, e quer construir a usina de Paiquerê. Toda essa energia é destinada para as unidades mineradoras, principalmente as que estão em Minas Gerais. A empresa diz que quer ser autossustentável em energia até 2014 e tem um discurso de que a energia gerada pelas hidrelétricas será utilizada em beneficio do povo brasileiro. Ocorre que a Alcoa é caracterizada como eletrointensiva e, para desenvolver a mineração, precisa de muita energia. O fato é que ela e outras empresas usam a energia para exportar commodities, principalmente alumínio, que é exportado in natura para a Europa e para a China.

Barra Grande faz parte desse contexto de produção de energia, que é usada para exportar commodities. É importante saber que pretendem construir Paiquerê no Rio Pelotas, e que se essa barragem for construída, o Rio Uruguai será um rio morto, porque será transformado em um lago.

* Publicado originalmente no site IHU-Online.

Fonte: Envolverde

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