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As favelas ao longo da urbanização brasileira

Elas foram essenciais para a industrialização. Mas, a partir dos anos 1980, com as reconfigurações do capitalismo, tornam-se entraves à especulação. Era preciso gentrificá-las ou removê-las em nome da cidade dos negócios e apesar de legislação progressista

O surgimento das favelas no Brasil é um produto lógico e necessário da urbanização periférica. Elas cumprem uma função na construção do capitalismo brasileiro e, de certa forma, sua funcionalidade tem se transformado ao longo da história recente. Essa reflexão contribui para entendermos porque, em um certo período, as favelas pareciam ser “toleradas”, ainda que a repressão nunca tenha desaparecido totalmente e, depois, passam a ser cada vez mais removidas de forma violenta, com muitos casos de transferência forçada para localidades periféricas distantes. Hoje, já vivemos a transição para o que seria um novo momento, a urbanização de favelas, embora a generalização dessa política pública ainda não seja uma realidade plena e sua realização não seja isenta de contradições.

A origem das favelas no Brasil é bem conhecida por meio da história dos combatentes da chamada Guerra de Canudos que, retornando ao Rio de Janeiro em 1897, não recebem as moradias prometidas como recompensa e ocupam o que hoje é o Morro da Previdência (embora não seja muito falado que já havia pessoas morando nesse lugar desde 1893). Também conhecido pelo nome Morro da Favela, em homenagem a uma planta da Caatinga de mesmo nome, esse lugar será conhecido como a primeira favela do Brasil. Porém, esse tipo de abordagem histórica individualizante, que foca em um episódio muito específico, corre o risco de ignorar processos sociais mais amplos que determinam a origem das favelas. A libertação das pessoas escravizadas, poucos anos antes, foi feita sem nenhuma política de absorção de mão de obra, em uma sociedade profundamente racista que promovia o chamado “processo de branqueamento” da população por meio do incentivo à imigração europeia.

Sem acesso aos meios de vida mais básicos, a população negra recorre à única solução possível: ocupar de forma “irregular” os terrenos disponíveis. Ocorrem casos de ocupações em áreas centrais que, de alguma forma, permaneceram desocupadas, em geral por algum risco ambiental, como os morros no Rio, as palafitas em Belém ou à beira de córregos em São Paulo. Evidentemente, alguns casos são em terrenos “apenas” distantes, periféricos e sem infraestrutura urbana básica. Estes últimos, eventualmente, acabam por ser “alcançados” pela expansão da chamada “cidade formal” e, possivelmente, passam a possuir algum grau de centralidade, ainda que regional, passando a possuir valor estratégico para o setor imobiliário. Porém, enquanto ainda são periféricos, acabam sendo vistos como uma “solução” ao “problema” dos cortiços no centro. Durante as operações urbanas no Rio de Janeiro na primeira década do século XX, muitos cortiços foram destruídos no centro sob a ideia de um urbanismo sanitarista, gerando o evento histórico conhecido como Revolta da Vacina (1904). Essas pessoas, quando removidas, vão engrossar os números de favelas mais antigas, como o Morro da Previdência, e contribuir para a criação de novas. Portanto, nesse primeiro momento, podemos observar que, embora a repressão e a estigmatização dos moradores desses espaços sejam sempre presentes, há uma tolerância do poder estatal, que foca em tentar remodelar o centro da cidade. As favelas mais centrais, por isso, são potencialmente mais vulneráveis à remoção.

Podemos rastrear a origem das favelas no contexto da abolição, mas sua expansão e consolidação vem em um segundo movimento que articula duas dimensões: a crise no campo e a expansão industrial. Conforme se agrava a crise agrária no começo do século XX, com o declínio da economia cafeeira e o aumento da exploração no campo, agravam-se os conflitos pela terra e o êxodo rural aumenta drasticamente. O crescimento urbano brasileiro teve que acomodar em poucas décadas o que os países centrais fizeram em séculos. Como sabemos, uma reestruturação agrária e um êxodo rural intenso são as pré-condições para um processo de industrialização (tal qual, por exemplo, os Cercamentos na Inglaterra).

Pessoas empobrecidas e despossuídas serão funcionais à indústria ao constituir uma fonte abundante de mão de obra barata e um exército industrial de reserva numeroso. Esses imensos contingentes populacionais serão a base da nossa inserção no mundo industrial, já que, nos países periféricos, isso se dá por meio da superexploração da força de trabalho. Nesse contexto, fica evidente que o salário será o valor mínimo necessário para manter apenas as condições essenciais de sobrevivência das pessoas trabalhadoras. Essa “cesta” inclui alimentação, moradia, transporte, saúde etc. Portanto, quanto mais os “itens” desse conjunto de necessidades básicas estiverem baratos, menor poderá ser o salário oferecido nas fábricas. Portanto, a superexploração do pequeno produtor de alimentos próximo aos centros urbanos baixa o custo da comida; favelas e periferias autoconstruídas baixam os custos com moradia (quase sempre o mais alto da lista); um sistema de transporte ferroviário, ainda que precário e lotado, permite a expansão horizontal da cidade, baixando ainda mais os custos ao permitir que pessoas trabalhadoras morem ainda mais longe, mas cheguem para trabalhar todos os dias. É por isso que, apesar de iniciativas pontuais de remoção e uma repressão constante nesses espaços, as favelas são funcionais e tem, de certa forma, sua existência “tolerada” pelo poder estatal.

A industrialização brasileira não possui um consenso sobre sua periodização, mas a maior parte da comunidade acadêmica concorda que a década de 1930, com Vargas, dá um pontapé inicial decisivo ao processo que se consolidará de forma mais contundente na década de 1950 (em especial com JK) e na primeira metade da década de 1960. Na segunda metade dessa década, já sob o regime da ditadura, começamos a viver uma transição. De acordo com o historiador Romulo Costa Mattos, a partir de 1968 as remoções atingem proporções gigantescas. O governo Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, já antecipa essa tendência para a primeira metade da década, embora tenha conseguido menos remoções do que seu sucessor lograria. É sintomático que o maior avanço das remoções tenha se dado sob um período ditatorial, já que muitas lideranças foram torturadas e mortas para viabilizar as operações urbanas. Infelizmente, pouco se fala sobre esse aspecto da ditadura, que não se limitava a perseguir apenas os grupos comunistas, mas também toda e qualquer liderança que tivesse algum impacto em lutas sociais das mais diversas (urbanas, rurais, sindicais etc.).

O que mudou em fins da década de 1960? As favelas perderam sua funcionalidade? De duas maneiras diferentes, sim. Em primeiro lugar, porque o grande contingente populacional dos maiores centros industriais já estava consolidado, havendo favelas e loteamentos irregulares em regiões muito periféricas que já davam conta de atender à “demanda” de uma mão de obra barata, graças em grande parte ao crescimento horizontal da cidade, proporcionado pelo avanço do sistema de transporte. Em segundo lugar, porque vivemos nesse período um momento de transição que mudará o olhar sobre as favelas: uma nova fase do capitalismo na qual a favela representa um obstáculo à acumulação de capital.

Sabemos que a passagem para a década de 1970 é um momento de grandes transições no capitalismo mundial. Vivemos os últimos anos do keynesianismo nos países centrais (em 1973 virá o primeiro choque do petróleo) e já começam as tendências que gestarão a onda neoliberal da década de 1980. A reprodução do capital, até então ainda focada na produção industrial, passa a ser cada vez mais no setor terciário e no mercado financeiro e especulativo. Embora o “casamento” entre indústrias e bancos remonte ao começo do século XX, o pós-Segunda Guerra Mundial lança novas tendências que se consolidam na década de 1970, sendo chamado por vezes de capitalismo informacional. No Brasil, por exemplo, aquilo que Milton Santos chama de meio técnico-científico-informacional só se consolida nessa década.

Nas cidades, esse período de transição será o começo de uma separação entre urbanização e industrialização. Quando esses processos ocorrem juntos na cidade, seu crescimento é exponencial. Porém, em dado momento, a urbanização se autonomiza e passa a não depender do componente industrial para sua continuidade, sediando cada vez mais o capital financeiro, os centros de comando, de pesquisa e desenvolvimento, os centros decisórios. O setor produtivo dos países centrais é primeiro exportado para a periferia do capitalismo (como o Brasil). Em um segundo movimento, mesmo nos países periféricos passarão a ver uma desconcentração industrial relativa, fruto do encarecimento de custos das metrópoles. É o que hoje se manifesta no crescimento das chamadas “cidades médias”.

A grande chave interpretativa para entender por que as remoções aumentam na década de 1970 e, principalmente, na década de 1980, é a compreensão de que, no momento neoliberal de financeirização da economia, a cidade não é importante para o capitalismo apenas como “palco” para a indústria. Não são suas infraestruturas concentradas e sua mão de obra barata os atrativos principais, mas o espaço das cidades em si passa a ser a mercadoria mais valiosa. Nas palavras de César Simoni, passa-se “dos negócios na cidade à cidade como um negócio”. O setor imobiliário passa a ser central no capitalismo, a venda do espaço em si é a grande jogada do momento, absorvendo uma quantidade crescente de capital excedente. Agora, as favelas serão obstáculos à valorização imobiliária, seja por desvalorizarem imóveis vizinhos, seja por serem elas mesmas espaços cobiçados e centrais que podem ser negociados, ou ainda por serem obstáculos para obras viárias cujo objetivo último é, novamente, a valorização do espaço. É sintomático que, na década de 1980, comece o movimento de desfavelização do então prefeito Jânio Quadros, levado a níveis ainda maiores pela gestão Maluf, no começo dos anos 1990, que removeu mais de 50 mil pessoas em uma única operação, dentre as várias que protagonizou. Contraditoriamente, o cenário no fim dos anos 1980 é de aumento da participação popular com a redemocratização, ainda que esta seja limitada e relativa, com a gestão Erundina, em São Paulo, espremida entre as de Jânio e Maluf. Portanto, intensificam-se também formas de luta contra essas remoções.

A década de 1990 consolida o modelo neoliberal no Brasil e a política de remoção de favelas, que não foi mais intensa devido à resistência popular e à sua organização. O século XXI, contudo traz novas tendências. As lutas sociais em torno das cidades arrancam do poder público uma legislação cada vez mais progressista e avançada (embora ainda haja muito por se conquistar). Lembremos que o Estatuto das Cidades é feito ainda na gestão FHC. O chamado ciclo progressista dos governos petistas permite um avanço no debate da política de urbanização de favelas e de moradias populares, embora a realidade social não veja esse avanço no mesmo ritmo. Contraditoriamente, esse período assiste uma das nossas remoções mais violentas, o caso Pinheirinho em 2012, na cidade de São José dos Campos, cidade que já vivia um ciclo de remoções violentas desde 2003.

Por que as remoções continuam mesmo com um governo teoricamente progressista? Por que a legislação mais avançada até o momento não foi suficiente para parar o processo? Por

um motivo simples: o capitalismo não pode mais se reproduzir sem o setor imobiliário. A cidade como um negócio é fundamental para a reprodução de capital, seja nos países centrais, seja na periferia. É sintomático que a grande crise capitalista do século XX tenha sido expressa no setor industrial, a crise de 1929, enquanto a maior crise do século XXI foi gestada por uma bolha especulativa urbana, a crise de 2008. Nessa conjuntura, a favela não pode mais ser tolerada. Mesmo nos casos de urbanização de favelas, uma parcela relevante ainda é removida e, em última instância, uma favela urbanizada “desvaloriza menos” seus entornos, o que acaba por ser uma solução “tampão” para o objetivo maior que é lucrar com o setor imobiliário.

O último grande movimento nessa linha contraditória é a maneira como favelas e outros espaços periféricos foram tratados na esteira dos megaeventos esportivos no Brasil, como a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. As remoções realizadas na construção de infraestrutura para tais eventos esportivos não deixam dúvidas de qual é a prioridade em relação à política urbana. Enquanto isso, todos os programas de moradia popular desse período não conseguiram abarcar a população de mais baixa renda do país. O turismo se afirma no século XXI como um vetor relevante de valorização do espaço, ao lado da especulação imobiliária, reforçando a lógica das operações urbanas hostis aos mais pobres. As favelas, quando não removidas, serão de alguma forma suprimidas e controladas por meio de operações policiais, culminando na política de UPP’s do Rio de Janeiro. Ao lado disso, o turismo em favelas do Rio de Janeiro cresce, sendo possível aferir até gentrificação em favelas como o Morro do Vidigal.

Por fim, vemos que esse tensionamento entre uma legislação urbana progressista e uma gestão urbana voltada para o setor imobiliário segue um percurso tortuoso de idas e vindas, em especial durante a fase pós-petista no Brasil. O fato é que o capitalismo transitou, e isso determinou em grande medida a nova postura diante das favelas. Aquilo que, em certa medida foi funcional, agora se coloca como barreira à acumulação de capital. Como sabemos, a questão habitacional segue longe de ser resolvida, portanto veremos ainda mais capítulos nessa relação tensa e conflituosa entre o setor imobiliário e os espaços de moradia popular das grandes cidades.

Autor: Fabiano Félix

Fonte: https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/as-favelas-ao-longo-da-urbanizacao-brasileira/


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