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Mineradora responsável pelo desastre de Mariana (MG) ameaça local sagrado indígena nos EUA

2º reportagem da série do ISA sobre mineração em Terras Indígenas relata luta contra megaprojeto que coloca em risco área protegida no Arizona

Mineração foi proibida em 1955 em Oak Flat. Floresta Nacional de Tonto, Arizona, EUA

por Maurício Angelo, do Observatório da Mineração, especial para o ISA

Um megaprojeto de exploração mineral de uma empresa que é propriedade da multinacional anglo-australiana BHP ameaça um território com locais sagrados e recursos ambientais necessários aos povos indígenas nos EUA.

A mina da Resolution Copper, no estado do Arizona, ficará entre as maiores dos Estados Unidos e poderá suprir um quarto da demanda de cobre do país, quando for instalada. O megaprojeto está em Oak Flat, um local sagrado para os Apache e culturalmente importante para outros povos indígenas, como os Yavapai, Hopi e os Zuni, dentro da Floresta Nacional de Tonto. O empreendimento é de propriedade da BHP e da Rio Tinto, outra gigante do setor, também anglo-australiana.


Junto com a Vale, a BHP divide o controle da Samarco, responsável pelo desastre de Mariana (MG), em 2015, quando o colapso de uma barragem de rejeitos de mineração matou 19 pessoas, destruiu rios e comunidades inteiras, entre Minas Gerais e Espírito Santo. A tragédia é considerada uma das maiores do Brasil e do mundo do gênero em termos de impactos socioambientais.

Para iniciar de fato o empreendimento no Arizona, que enfrenta a resistência de ONGs e indígenas há muitos anos, o governo americano precisa fechar negócio com a mineradora, o que inclui uma troca de terras, como forma de compensação à população afetada. A empresa quer usar 980 hectares em Oak Flat para instalar a mina e oferece em troca 2,2 mil hectares de terras conservadas ao redor do Arizona. A justiça foi acionada e até agora se mostrou favorável à iniciativa.

Embora Oak Flat não seja formalmente terra indígena, é de uso tradicional comprovado, fornecendo há milhares de anos aos nativos alimentos, remédios, habitação e um local sagrado para cerimônias religiosas, que ainda são realizadas lá. Além da área estar em uma Floresta Nacional, a mineração foi proibida, em 1955, por causa de seus atributos culturais e ecológicos excepcionais. São esses impedimentos legais que as mineradoras tentam reverter agora.

Explosivos serão usados para extrair o minério, criando uma imensa cratera e destruindo completamente o local sagrado. Se a mina avançar conforme planejado, consumirá cemitérios, ruínas e pinturas rupestres.

“É a nossa identidade, é a nossa cultura, é o nosso jeito. É disso que se trata esta luta – de sobrevivência”, declarou Wendsler Nosie, da Apache Stronghold, organização indígena que luta para proteger locais sagrados e entrou na justiça, até o momento sem sucesso, para tentar impedir o projeto.

Acima, vídeo com imagens de drone de Oak Flat

Leis não protegem locais sagrados

Randy Serraglio, da ONG ambientalista Center for Biological Diversity (Centro para a Diversidade Biológica), que acompanha o caso, afirma que as medidas de compensação alegadas pela mineradora não passam de cortina de fumaça e que é difícil encarar o poder de uma empresa tão grande. Para ele, os indígenas não têm condições de enfrentar judicialmente as grandes mineradoras, mesmo com eventuais escritórios de advocacia que se disponham a representá-los de graça.

“Não é uma luta justa de forma alguma. Um problema é que não temos um regime legal que realmente proteja os locais sagrados indígenas, como Oak Flat. Temos leis de preservação histórica e cultural, mas elas não são obrigatórias e contêm brechas. As mineradoras podem alegar que estão preservando alguns artefatos indígenas e que isso faria a mitigação, mas assim eles estão livres para prosseguir com a destruição da área de qualquer maneira”, disse Serraglio.

Membros do Serviço Florestal americano admitiram que sofreram pressão para liberar a análise ambiental do projeto até um ano antes da previsão, para que acontecesse ainda dentro da administração de Donald Trump.

Documento revelado pelo jornal New York Times mostrou que o então secretário de Comércio reuniu-se com executivos da Rio Tinto pelo menos três vezes e estava empenhado em promover o empreendimento. A troca de terras necessária para o projeto ocorreu após o senador republicado John McCain, grande beneficiário de doações eleitorais da Rio Tinto, inserir um dispositivo em um projeto de lei que permite que a troca seja consumada pelo Serviço Florestal com rapidez, independente das conclusões do estudo ambiental.

McCain concorreu às eleições presidenciais contra Barack Obama, em 2008, e foi derrotado. Ele morreu em 2018.

Novamente, o lobby das mineradoras atua decisivamente, a exemplo do que acontece no Brasil – e não raro às escondidas. É por isso que Serraglio acredita que uma mudança nas leis é primordial.

“É extremamente importante que mudemos a lei dos EUA para fornecer proteção real para lugares como Oak Flat, que são tão importantes e centrais para a história, cultura e religião indígenas. Precisamos de um novo regime para fornecer aos indígenas um assento significativo à mesa e poder real para proteger seus locais sagrados”, afirmou.

Por fim, os ativistas e indígenas conseguiram encaminhar um projeto de lei na Câmara dos Representantes, o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil, e outro no Senado, que deve ser apresentado por Bernie Sanders, para tentar barrar o projeto em Oak Flat. Mais de 100 organizações seguem fazendo pressão para tentar proteger a área. Segundo pesquisa de opinião, 74% dos moradores do Arizona são contra o empreendimento.

Resolution Copper afirma em seu site que tem o compromisso de “manter o acesso público” à Oak Flat e que trabalha para “buscar o consentimento dos 11 povos indígenas americanos afetados pelos planos da empresa antes de qualquer decisão sobre o desenvolvimento do projeto, de acordo com as bases do International Council on Mining and Metals (ICMM) sobre Povos Indígenas e Mineração”.

Urânio, tratados quebrados e poder desigual

Os maus exemplos de impactos da mineração em terras indígenas nos EUA acumulam-se.

De 1944 a 1986, quase 30 milhões de toneladas de minério de urânio foram extraídas das terras do povo Navajo por meio de acordos estabelecidos com empresas e o governo.

Muitos Navajo trabalharam nas minas, vivendo e criando famílias nas proximidades.
Hoje, elas estão fechadas, mas um legado de contaminação permanece, incluindo mais de 500 locais de exploração abandonados, bem como casas e fontes de água com níveis elevados de radiação.

Os efeitos potenciais à saúde incluem câncer de pulmão por inalação de partículas radioativas, câncer ósseo e problemas renais.

Isso mostra que os acordos não são benéficos para os indígenas, de acordo com Sayokla Williams, coordenadora do setor de mineração da Indigenous Environmental Network (Rede Ambiental Indígena, em tradução livre), que congrega associações indígenas, em entrevista para esta reportagem

“A exploração gerou milhões de dólares e empregou muita gente, mas não funcionou para a comunidade local, porque os seus recursos, como a água, foram consumidos. Há uma divisão muito grande entre todos os envolvidos”, diz.

Em Dakota do Sul e em Nevada, tratados assinados pelo governo norte-americano ainda no século XIX não foram respeitados e são alvos de disputa até hoje.

É o caso de um acordo de 1868 com os Sioux e Arapaho, em Dakota do Sul. O tratado estabeleceu a reserva Great Sioux, uma grande extensão de terras a oeste do Rio Missouri, e designou a Floresta Nacional de Black Hills para uso exclusivo dos indígenas. Mas quando ouro foi encontrado na região, a administração federal renegou o entendimento, redesenhou os limites dos territórios protegidos e obrigou o povo Sioux – tradicionalmente caçadores nômades – a um estilo de vida agrícola e sedentário.

Em 1980, a Suprema Corte decidiu que os EUA haviam se apropriado ilegalmente de Black Hills e concedeu mais de US$ 100 milhões em indenizações. A nação Sioux recusou o dinheiro – que agora alcança a cifra US$ 1 bilhão, em valores corrigidos – por entender que a área nunca esteve à venda. A disputa judicial continua.

No estado de Nevada, em 1863, foi firmado o Tratado de Ruby Valley entre o povo Western Shoshone e o governo americano. Os indígenas não cederam as terras envolvidas, mas concordaram em permitir algumas atividades econômicas e a construção de ferrovias.

Em 2006, a maioria dos conselhos Western Shoshone recusou-se a aceitar um pagamento de US$ 145 milhões para transferir 101 mil quilômetros quadrados de seu território para o governo federal. Eles temem que aceitar o pagamento seja considerada uma extinção tácita de suas reivindicações de terras. A disputa judicial envolve minas de ouro e outros minerais e também ainda não foi resolvida.

Terras federais, estaduais e privadas

A legislação mineral nos EUA é complexa e fragmentada, com diferentes graus de sobreposição entre as esferas governamentais. A propriedade do solo é distinta do subsolo e a regulamentação varia de acordo com a jurisdição.

No caso do subsolo das reservas indígenas, existe uma combinação de propriedades privadas, coletivas e federais, resultante do processo histórico de expropriação de territórios das nações indígenas. Em termos gerais, foi mantida a prática de estabelecer tratados, o que resultou em centenas deles estabelecidos entre os EUA e diferentes nações indígenas. Porém, grande parte foi sistematicamente desrespeitada.

Quem concede ou não os direitos de extração em reservas indígenas é justamente a Secretaria do Interior. Mas, com o aumento da demanda mineral nas décadas de 1970 e 1980, algumas nações indígenas passaram a solicitar autorização da Secretaria do Interior para realizar acordos diretamente com as mineradoras, em vez de apenas fazer concessões.

Esse movimento resultou na Lei de Extração Mineral Indígena de 1982 (Indian Mineral Development Act), que autorizava essas populações a firmar diferentes tipos de entendimentos com corporações extrativas, desde que aprovados pela Secretaria de Interior.

Mas esse sistema levou a acordos pouco vantajosos para as nações indígenas, já que elas raramente conseguiam contratar consultorias especializadas em aspectos legais ou técnicos para diminuir o desequilíbrio de poder durante as negociações. Algo também observado no Canadá, segundo o relato de lideranças indígenas do país vizinho feito para a primeira reportagem desta série do ISA.

Hoje, os povos indígenas nos EUA podem fechar parcerias com mineradoras, se assim quiserem, mas não têm o poder de evitar a mineração quando não concordarem com os projetos. O governo federal detém o direito de expropriação, mesmo que isso viole os tratados assinados com a população envolvida.

Também há casos em que o governo dos EUA não reconhece que a propriedade do subsolo é dos indígenas. E sempre há o risco de que desapropriações aconteçam sem o pagamento de compensações.

Hoje, 2,48 milhões de quilômetros quadrados – cerca de 26% da área do país – estão sob administração do governo federal. E apenas 12% do território nacional tem algum tipo de proteção ambiental legal. O resto está totalmente aberto para projetos extrativistas.

Sayokla Williams destaca que, na prática, os líderes indígenas se veem obrigados a fazer escolhas tremendamente difíceis diante da situação.

“O seu povo está enfrentando falta de casas para morar, falta de água potável, de infraestrutura de saúde e uma mineradora chega e diz ‘você quer minerar a sua comunidade e receber esse dinheiro?’. Se você é o líder de uma comunidade, essa é a decisão mais difícil do mundo, porque o seu povo está com fome, está em pobreza extrema e você precisa decidir, o que é muito difícil de se fazer”, relata.

Indígenas esperam mudanças na legislação

Os povos indígenas dos Estados Unidos têm um bom motivo para acreditar que mudanças na legislação que incide sobre as suas terras e os direitos minerais podem acontecer em breve. E o nome desse motivo é Deb Haaland.

Nomeada pelo presidente Joe Biden, Haaland é a segunda indígena a chefiar uma secretaria no governo dos EUA. E a primeira justamente na Secretaria do Interior, responsável por supervisionar políticas orientando o uso de milhões de hectares de terras federais e indígenas, incluindo a exploração das riquezas minerais.

Haaland, que é do povo Laguna, comanda a relação do governo norte-americano com 574 povos indígenas reconhecidos. A sua nomeação, que enfrentou a oposição dos Republicanos, foi apoiada por grupos indígenas, ambientalistas e organizações da sociedade civil.

“Com Deb Haaland nós temos a oportunidade de mudar leis e regras para o setor mineral. Isso é algo que eu realmente acho possível de fazermos acontecer”, disse Sayokla Williams.

Assim como Jair Bolsonaro, Donald Trump, que deixou o posto de presidente em janeiro, atuou deliberadamente para favorecer grandes mineradoras e projetos extrativistas.

Diante disso, da eleição de Biden e da nomeação de Haaland, “agora é a hora para mudar o cenário”, acredita Williams, que citou a necessidade de preservar permanentemente lugares sagrados para os povos indígenas que estão ameaçados pela mineração, como o Grand Canyon – que tem 600 pedidos para minerar urânio – e a região de Oak Flat, ambos no Arizona.

Em artigo para o jornal Washington Post publicado em 2019, escrito em parceria com a deputada federal brasileira Joênia Wapichana (Rede-RR), Haaland criticou as políticas ambientais de Jair Bolsonaro e Donald Trump, que ainda serve de “inspiração” para o presidente brasileiro.

Com a nova política climática implementada por Joe Biden, que imediatamente colocou os Estados Unidos de volta no Acordo de Paris e não tem dado vida fácil ao desmonte ambiental de Bolsonaro, Haaland é mais uma peça importante neste jogo político.

A esperança é de uma mudança drástica na Secretaria do Interior, que historicamente foi usada para oprimir os indígenas dos EUA. A promessa é de começar a reparar um legado de tratados violados e abusos cometidos pelo governo federal.

“Doutrina do Descobrimento”

Para além da complexidade das normas que regem o sistema americano de exploração de recursos minerais, Sayokla Williams destacou que uma ideologia se sobrepõe a tudo isso e, até hoje, determina a relação dos governos com os povos indígenas.

É a chamada “Doutrina do Descobrimento”, conjunto de ideias desenvolvido desde a colonização que legitima o roubo de terras, expulsão e genocídio dos povos indígenas e que, na visão de antropólogos, historiadores e ativistas, continua inspirando administradores públicos, empresários e juízes.

Em 2012, um Fórum Permanente da ONU defendeu que esta doutrina deve ser repudiada. “Os povos indígenas e nativos se manifestaram contra o uso contínuo do princípio internacionalmente reconhecido de ‘terra nullius’ – que descreve terras que não pertencem a ninguém, mas que poderiam, em alguns casos, ser adquiridas por meio de ocupação. Tais princípios foram baseados em suposições racistas e não científicas e não poderiam ser usados pelos Estados para justificar o ‘roubo’ de terras, territórios ou recursos naturais nativos”, afirma o texto, baseado nas opiniões expressas no Fórum.

Para Williams, é fundamental levar essa doutrina em conta. “Ela é racista porque obedece apenas à visão que o homem branco teve e tem dos indígenas, e não respeita o nosso lado, o que nós temos a dizer. E é nessa doutrina que todo o nosso sistema de governo é baseado até hoje”, disse.

Consulta livre, prévia e informada

Ainda segundo Williams, isso mostra que não há consulta livre, prévia e informada nos EUA, porque os interesses minerários estão acima de tudo e os indígenas ficam abaixo deles.

“É uma relação paternalista. O governo detém a terra como garantia para nós. O que o governo fez foi tentar processar esses pedidos de terra, dizendo que iriam nos pagar milhões de dólares em troca. As pessoas disseram que não queriam dinheiro, queriam a terra de volta. A Secretaria do Interior disse que aceitaria o dinheiro representando os indígenas e disseram que tudo estava resolvido mesmo com as pessoas sendo contra”, defende.

Para Colleen Medicine, diretora da Association on American Indian Affairs , grandes empresas de petróleo, gás e mineração tendem a ter muitos recursos, capacidade de financiamento e influência política quando se trata de seus objetivos e projetos. Por outro lado, as leis federais estabelecem que os órgãos do governo apenas “levem em conta” certos aspectos socioambientais, como a preservação de locais sagrados mas não de maneira obrigatória, o que abre brecha para todo tipo de violação.

“Quando os projetos avançam sem a devida consulta aos povos indígenas, existe o risco de que locais sagrados sejam destruídos no processo. A maior lição para mim é que é preciso engajar-se com os povos indígenas que representam as terras nas quais os principais empreendimentos devem ocorrer”, afirma.

Como a necessidade de consentimento não é garantida, avalia Jan Morrill, da Earthworks, ONG que trabalha com os indígenas de Western Shoshone, o poder econômico se impõe.

“A forma como as nossas leis de mineração são redigidas torna extremamente difícil para as agências reguladoras do governo negarem os pedidos de mineração, uma vez que tenham sido submetidos. Mesmo se eles forem contestados por povos indígenas ou outras comunidades da linha de frente e mesmo se houver severo dano ambiental”, diz Morrill.

Neste vale tudo, perde quem tem menos poder.

Fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/mineradora-responsavel-pelo-desastre-de-mariana-mg-ameaca-local-sagrado-indigena-nos-eua


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