fbpx
Foto principal (MPA): Cacique Farid, dos Guarani Kaiowá, participa de entrega de sementes crioulas

Guarani Kaiowá e camponeses trocam sementes e saberes no Mato Grosso do Sul

Povos indígenas no Mato Grosso do Sul receberam 3,4 toneladas de sementes crioulas, além de bioinsumos para garantir o plantio; deputados querem criminalizar  distribuição e armazenamento em prol do monopólio das grandes indústrias fornecedoras

Foto principal (MPA): Cacique Farid, dos Guarani Kaiowá, participa de entrega de sementes crioulas

Por Nanci Pittelkow, em De Olho nos Ruralistas

As comunidades Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul estão na posse de apenas 29% das suas terras já reconhecidas pelo estado brasileiro, cada vez mais cercados pelo agronegócio. A resistência desses indígenas encontrou a ação solidária dos camponeses no dia 13 de agosto, quando foram entregues 3,4 toneladas de sementes crioulas e agroecológicas às comunidades indígenas dos povos Guarani e Kaiowá no estado.

São sementes de milho, feijão, arroz de sequeiro, amendoim, gergelim, fava, urucum, feijão miúdo, guandu e hortaliças. Para que as sementes se desenvolvam e se multipliquem plenamente, serão entregues biofertilizantes e cerca de 1,5 toneladas de remineralizador de solo (pó de rocha).

A ação foi executada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e pela Associação Nacional de Agricultura Camponesa (Anac), com apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Instituto Cultural Padre Josimo e das cooperativas Cooperbio, Cooperfumos, Bionatur e ArpaSul.

“A entrega foi feita nessa época para aproveitar a janela de plantio, com a chegada da chuvas”, conta Frei Sérgio Görgen, do MPA. As sementes foram selecionadas a partir das necessidades e saberes dos indígenas. “Eles demandaram o milho branco, essencial para sua soberania alimentar e utilizado em rituais, como os de batismo”. “Mas ainda não choveu, está muito seco”, informou Anastácio Peralta, da Aldeia Panambizinho, em Dourados.

Todos os envolvidos consideram a entrega das sementes uma devolução, e não uma doação. “Se alguns camponeses conseguiram garantir uma produção de sementes — crioulas, originárias ou nativas — e entenderam que isso é parte da geração de um mundo melhor tanto na alimentação como fonte de sobrevivência, a gente deve isso aos indígenas, que salvaguardaram essas sementes”, afirma Matias Benno Rempel, do Cimi.

“A semente para nós é um bem espiritual, é uma coisa que vem junto com a gente; sem ela nós não existimos”, afirma Anastácio Peralta. “Precisa ser cuidada como uma criança. Por meio dela a gente se alimenta, se fortalece”.

Frei Sérgio observa que os indígenas sempre cultivaram milho, amendoim, abacaxi, batatas, mandioca. “O roubo de terras também foi um roubo da biodiversidade e da riqueza genética”, explica. “Nós, os brancos, tiramos os meios – a terra e as sementes. Nada mais justo que os camponeses preservem e cultivem essas sementes para devolvê-las aos indígenas”.

SEMENTES SÃO CAMINHO PARA RECONSTRUÇÃO DA EXISTÊNCIA INDÍGENA

O relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, de 2018, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostrou que os Guarani Kaiowá detêm apenas um terço de suas terras e contabilizou o assassinato de catorze líderes da etnia entre 2001 e 2016. Dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e secretarias estaduais de saúde informaram a ocorrência de 113 assassinatos de indígenas em 2019.

“Essa violência não provocou o extermínio desses povos por conta justamente da imensa capacidade de resiliência, resistência e defesa obstinada dos Guarani Kaiowá”, relata Matias Benno, do Cimi. Matias relembra que o estado brasileiro planejou retirar todos os indígenas de suas terras para confiná-los em reservas artificiais. “E desde o primeiro dia em que isso aconteceu os indígenas começaram a retomada de seus territórios”.

A violência cerca os indígenas da região por todos os lados. Desde a terra que é negada e tomada, a água envenenada propositalmente, as ameaças que chegam pelos tratores que derrubam ocas, o fogo que consome casas de reza, os aviões que despejam agrotóxicos. A dificuldade dos Guarani Kaiowá de manter o território e de produzir na terra gera fome, que consome até as sementes. O estado, quando age, opta pelo assistencialismo, com a entrega de cestas básicas. “As sementes são um caminho para a busca da autoidentidade, auxiliando na reconstrução da existência indígena por meio da solidariedade camponesa”, diz Frei Sérgio.

Anastácio faz um diagnóstico certeiro de como o agronegócio interfere não somente nas comunidades indígenas, mas na vida de todos.

— O agronegócio quando chega não é sustentável. É destruidor da mata, da água, do peixe, da semente crioula. Depois ele destrói ele mesmo. É crise em cima de crise. Não tem um pensamento de futuro, o pensamento é ganhar muito. Mas então destrói tudo e não consegue recuperar.

TROCA DE SEMENTES COMEÇOU EM ENCONTRO DA VIA CAMPESINA

A luta dos indígenas por território e soberania sensibilizou os agricultores participantes de um encontro da Via Campesina há alguns anos. Segundo Matias Benno, a participação de Frei Sérgio durante o evento foi bastante impactante no sentido de orientar que não caberiam apenas palavras de solidariedade diante da situação dos Guarani Kaiowá, mas tratava-se da defesa dos últimos territórios livres do país. “Se eles caíssem, todos em seguida cairiam também, as aldeias e os assentamentos e acampamentos de camponeses em todo o Brasil”.

Matias conta que as palavras de Frei Sérgio marcaram o início da ação: “Se a distância geográfica nos impede de colocar nosso corpo na frente da bala, pelo menos as sementes que a gente aprendeu a salvaguardar no nosso território podem caminhar”.

Além da entrega das sementes, a ação proporciona a troca de saberes entre camponeses e indígenas na busca de soluções de manejo dos grãos e dos bioinsumos. Um dos desafios do cultivo de alimentos de maneira orgânica e não industrial é lidar com os organismos ou pragas que fogem das monoculturas do agronegócio vizinhas e encontram nas lavouras indígenas um alimento apetitoso.

Matias, do Cimi, ressalta que os camponeses que produzem as sementes reconhecem que o desafio é grande diante de terras indígenas que estão devastadas. Mas se mostram confiantes. “O mato vai demorar para vir, mas vai vir”. Ele ainda lembra a importância desses cultivos diante da proposta de deputados que querem criminalizar a distribuição e o armazenamento das sementes nativas em prol do monopólio dos grandes indústrias fornecedores de sementes inférteis e transgênicas.

Mestrando na área de Educação e Territorialidade, Anastácio diz que a educação formal e as universidades precisam se transformar para lidar com os desafios da sustentabilidade. “É preciso ter mais pesquisas para desenvolver outras formas de lidar com a terra e com a produção para a continuidade do planeta”, explica.

Por ora, os Guarani Kaiowá comemoram a chegada das sementes e dos camponeses para essa troca de saberes:

— Algumas sementes estavam em falta e trazem muito ânimo para gente plantar, colher, comer, beber e ser feliz. A semente de boa qualidade traz uma vida de boa qualidade. Nós somos uma semente também. A gente fica forte conforme a semente que a gente come. Se a semente é de boa qualidade, você é feliz, você é forte, você é alegre. Se a semente é envenenada você se entristece. 90% da sua alegria é o que você come.

INDÍGENAS SÃO EXEMPLO DE RESISTÊNCIA, CONSTATA FREI SÉRGIO

Entre as espécies entregues aos Guarani Kaiowá está o urucum, usado no artesanato indígena, nos rituais como os de passagem para a vida adulta, além do uso medicinal, e na pintura do corpo para guerra, o que faz dessa semente um símbolo de resistência. “Os indígenas são exemplo nesse sentido”, reflete Frei Sérgio. “Depois de um golpe eles se recolhem e se reorganizam, de forma paciente, sem se acomodar”.

Foi o que fizeram depois da invasão portuguesa, durante a ditadura, depois do golpe de 2016, durante a pandemia. “Nós, brancos, agimos por espasmos, e precisamos aprender com os indígenas essa forma de resistir e nos organizar com persistência”. Outro aprendizado é o de viver com pouco, não tão pouco como são obrigados hoje, sem terras e sem bioma, “mas sem acumulação e respeitando a natureza do outro”, explica o religioso.

Anastácio Peralta, ou Homem Sol Nascente, resgata a simbologia que ilustra o momento:

— A gente tem que ser forte como uma semente. Mesmo passando no fogo, afogada no meio das terras ou na poluição, no dia em que chover ela retorna. Nasce.

Fonte: www.deolhonosruralistas.com.br/2021/10/18/guarani-kaiowa-e-camponeses-trocam-sementes-e-saberes-no-mato-grosso-do-sul/


Publicado

em

,

por

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.