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Rompimento de barragem de mineração em Nossa Senhora do Livramento (MG) (Fotos Públicas)

Estratégico para quem? Notas sobre o licenciamento ambiental de projetos minerais estratégicos. Por Bruno Milanez*

O modelo mineral brasileiro tem como característica fundamental a abertura de grandes minas, voltadas essencialmente para a exportação de minerais, causando, como principais efeitos, a concentração da receita por poucas grandes empresas e a externalização dos custos ambientais para a sociedade

Rompimento de barragem de mineração em Nossa Senhora do Livramento (MG) (Fotos Públicas)

por Bruno Milanez, No Diplomatique

Em 24 de março, o presidente da República, juntamente com os ministros da Economia e de Minas e Energia, assinou o Decreto 10.657/2021, que instituiu a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimentos para a produção de minerais estratégicos. Este decreto vem na esteira da Lei 13.334/2016, que definiu que entidades estatais “têm o dever de atuar” para que esses projetos de investimento sejam concluídos “em prazo compatível com o caráter prioritário”. Em seu capítulo que trata “Da liberação de empreendimentos do PPI”, a Lei 13.334/2016 define “liberação” como sendo “a obtenção de quaisquer licenças, […] de natureza regulatória, ambiental, indígena, urbanística, […] hídrica, de proteção do patrimônio cultural, […] e quaisquer outras, necessárias à implantação e à operação do empreendimento”.

O conceito de “minerais estratégicos” ou “minerais críticos” vem se tornando cada vez mais comum nos debates e políticas do setor. Em 2008, a União Europeia estabeleceu a “Iniciativa para Matéria Prima”. Para tanto, ela definiu uma lista de materiais críticos, baseada na sua importância para setores econômicos estratégicos, no risco de desabastecimento e na dificuldade de desenvolver materiais substitutos.[1] Em 2017, o governo dos Estados Unidos publicou uma estratégia para garantir o abastecimento de “minerais críticos”, definidos como minerais cuja cadeia de suprimentos é vulnerável, e que tem uma função essencial na fabricação de produtos cuja falta teria impactos significativos na economia ou segurança nacional.[2] Ambas as iniciativas derivaram do aumento de preços de vários minerais durante o boom das commodities, dos anos 2000, e responderam às políticas da China de redução de cotas de exportação de terras raras (das quais ela é a maior produtora global) após 2010. Apesar da conceituação recente e do contexto contemporâneo, a movimentação da União Europeia e dos Estados Unidos nos remete à busca de minerais específicos, como ferro e manganês, que ocorreu no contexto da Segunda Guerra Mundial e que esteve, inclusive, associada à criação da, então, Companhia Vale do Rio Doce.

A noção brasileira de “estratégico”, porém, apresenta particularidades. No decreto de março, o governo estabeleceu como tal os minerais (1) cuja importação em grandes quantidades impacta setores vitais da economia; (2) que são importantes para processos de alta tecnologia; e (3) que gerem superávit para a balança comercial do país. O primeiro ponto parece estar diretamente associado ao agronegócio, enquanto o segundo emula a preocupação da União Europeia e dos Estados Unidos, e poderia justificar a definição de certos minerais prioritários, caso houvesse alguma política clara de promoção de Ciência, Tecnologia e Inovação no país. Por outro lado, o terceiro critério expressa a dinâmica da divisão internacional do trabalho entre regiões extrativas e industriais, reforçando a subalternidade do Brasil. Dessa forma, o Ministério comandado pelo Almirante Bento Albuquerque definiu como estratégico o abastecimento de cadeias críticas de suprimento; críticas ou estratégicas para outros países, entretanto.

O modelo mineral brasileiro tem como característica fundamental a abertura de grandes minas, voltadas essencialmente para a exportação de minerais, causando, como principais efeitos, a concentração da receita por poucas grandes empresas e a externalização dos custos ambientais para a sociedade.[3] Se olharmos para os principais minerais extraídos no país, a maior parte é exportada na forma bruta, ou apenas após o beneficiamento primário. Para 2015, os percentuais equivaleram a 93% do concentrado de cobre, 83% do ouro, 86% das ligas de ferro-nióbio, 73% do minério de ferro e 66% do concentrado de manganês.[4] Em outras palavras, pelo novo decreto, qualquer projeto de grande mineração metálica voltado para a exportação poderá se candidatar como “mineral estratégico”.[5]

A mineração vive uma crise de credibilidade no mundo[6] e, no Brasil, tem buscado superar essa situação, especialmente por meio da construção de diferentes narrativas. Durante a reforma do Código Mineral, com o Decreto 9.406/2018, assinado por Michel Temer, o setor se autodefiniu como de “interesse nacional”. Em 2019, o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) firmou um acordo com a Associação de Mineração do Canadá para importar seu modelo de certificação “Rumo à Mineração Sustentável”. Em 2020, conseguiu que o governo Bolsonaro o declarasse “essencial” e agora, em 2021, sob mais uma adjetivação oca, tenta se vender como “estratégico”.

Essa movimentação do setor no contexto nacional parece possuir uma dupla função. Por um lado, criar um discurso de legitimação e construir uma situação de resignação e aceitação dos projetos extrativos, incluindo seus impactos e desastres, tanto pelas comunidades atingidas, quanto pela sociedade em geral. Por outro lado, sugere a formação de um contexto de exceção[7], que permitiria às empresas mineradoras operarem em paralelo ao atual quadro normativo.

Assim, projetos de “interesse nacional” poderiam impor alterações aos limites de unidades de conservação ou mesmo levar à desterritorialização de assentamentos rurais; empresas certificadas como “sustentáveis” teriam um “selo de conformidade” que diminuiria a necessidade de controle efetivo das agências estatais; atividades “essenciais” não seriam obrigadas a interromper suas atividades, mesmo que seus trabalhadores sejam infectados pela Covid­-19; e, agora, minerais “estratégicos” não seriam obrigado a passar pelos trâmites normais do licenciamento ambiental.

Todavia, é importante perceber que essa qualificação da mineração não é uma denominação absoluta e objetiva. Na verdade, ela é uma narrativa que vem sendo montada paulatinamente ao longo dos últimos anos e, como tal, pode e deve ser descontruída. Por exemplo, já no início do século XX, o cientista político Arthur Bentley[8] definia o “interesse nacional” como uma expressão dos interesses de um grupo específico, que busca representá-los como universais, de forma a promover a adesão de outros grupos a esses interesses. A “mineração sustentável” foi descrita pelo antropólogo Stuart Kirsch[9] como um oxímoro, ou seja, uma contradição em termos. Ele explica que corporações mineradoras buscam cooptar o discurso de seus críticos de maneira sistemática, e que o termo “sustentabilidade” vem sendo estrategicamente mobilizado para construir capital simbólico,[10] isto é, para criar distinção positiva potencialmente traduzível em ganhos econômicos.

No caso específico da ideia de essencialidade, não houve qualquer debate democrático na definição dos setores prioritários no Brasil. O que ocorreu foi uma escolha discricionária e arbitrária, que chegou a incluir salões de beleza e academias de esporte. Mesmo nessa situação, o setor mineral teve que se esforçar para convencer o governo da sua essencialidade:

“Por incrível que pareça, nós tivemos dificuldade de explicar no primeiro momento, tanto a nível federal, quanto a nível estadual e municipal da essencialidade da atividade. Tanto que logo no início nós fizemos uma portaria do Ministério atestando a essencialidade da mineração e, também, logo em seguida, no mês de abril, um decreto presidencial veio de encontro [sic] a essa nossa portaria. Para quê? Para que as atividades não parassem” (Ministro Bento Albuquerque, 2020).[11]

Portanto, conhecer esse processo é importante para entender como tal narrativa vem sendo elaborada, de que forma o setor mineral tenta se mostrar como legítimo, e ainda como se propõe a criar uma estrutura institucional de tratamento diferenciado para suas atividades.

Diante desse contexto, é necessário compreender que a extração mineral não é, por princípio, de interesse nacional, sustentável, essencial nem estratégica. Ela é uma atividade econômica que causa impactos ambientais permanentes de larga escala e que, em 2018, segundo o Ministério de Minas e Energia, respondeu por apenas 0,64% do PIB do Brasil.[12] Se o setor mineral merece alguma atenção especial, deveria ser mais pelos danos causados à paisagem e aos recursos hídricos, além dos riscos criados para quem vive em suas proximidades, do que pelos ganhos econômicos que gera para a sociedade. Nesse sentido, seria necessário que houvesse cada vez mais rigor no licenciamento ambiental dos projetos de mineração e não maior flexibilização.

Com a aprovação do Decreto 10.657/2021, o governo federal parece caminhar em direção ao arranjo montado pelo governo de Minas Gerais, quando publicou o Decreto Estadual 47.042/2016. O decreto mineiro criou a Superintendência de Projetos Prioritários (SUPPRI), que tem o papel de analisar processos de licenciamento de empreendimentos considerados prioritários pelo governo do estado, tornando o licenciamento mais “ágil”. Essa Superintendência foi a responsável pela elaboração da avaliação ambiental que embasou o licenciamento da barragem da Vale no Complexo de Córrego do Feijão, em Brumadinho, pouco antes do seu rompimento. Assim, a concessão de licenças ambientais “em prazo compatível com o caráter prioritário”, e não de acordo com as necessidades da devida avaliação técnica, se mostra extremamente problemática.

No caso federal, se considerarmos que, em 2018, existiam 5.675 processos de exploração mineral (em suas diferentes fases) em sobreposição com Unidades de Conservação e Terras Indígenas apenas na Amazônia Legal,[13] podemos imaginar o tamanho dos danos que projetos avaliados de forma precipitada podem causar. Nesse sentido, deve-se lembrar da importante relação entre mineração e desmatamento na região. Pesquisas indicam que operações minerais em larga escala induziram um desmatamento doze vezes maior do que a área de lavra concedida; tendo sido responsáveis, ao todo, por 9% do desmatamento na Amazônia entre 2000 e 2015.[14]

Para além da questão ambiental, análises sobre o desenvolvimento dos municípios minerados na região Amazônica têm mostrado que a implantação de projetos extrativos não tem contribuído para a erradicação da pobreza, a redução da desigualdade social ou a diminuição da violência.[15] Portanto, a concessão acelerada de licenças ambientais de projetos minerais na Amazônia tende a agravar a pressão sobre os povos indígenas e a intensificar a degradação ambiental, a contaminação hídrica, a emissão de gases de efeito estufa e, ainda, a piorar a condição social nas áreas urbanas.

Henry Mintzberg[16] afirma que “estratégia” pode ter vários significados. Quando se define a estratégia como um plano, pode-se entendê-la como um conjunto de ações coordenadas para garantir que um determinado objetivo seja alcançado. Por outro lado, ele também define que estratégia pode ser um “padrão de fluxos de ações”, ou seja, um conjunto de iniciativas que são simplesmente repetidas ao longo do tempo.

Olhando a política mineral do governo brasileiro, o que percebemos é a estratégia como um padrão, segundo o qual as ações se traduzem na redução do rigor do licenciamento ambiental, com vistas a estimular atividades de extração mineral que mantêm a atual inserção subordinada do Brasil no mercado global. Do ponto de vista das empresas mineradoras, a aprovação do Decreto 10.657/2021 parece ser mais um passo na consolidação de sua estratégia, enquanto plano. Ou seja, uma série de iniciativas que tentam não apenas construir a tão almejada legitimidade, como ainda criar uma situação de exceção que lhes permita operar sem precisar se submeter ao quadro normativo vigente.

*Professor da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS)

[1] CEC (2008) The raw materials initiative – meeting our critical needs for growth and jobs in Europe. Brussels: Commission of The European Communities.

[2] USA (2017) Executive Order 13817 of December 20, 2017. A federal strategy to ensure secure and reliable supplies of critical minerals. Washington: Federal Register.

[3] Milanez, B. (2019) Movimentos socioambientais: lutas, avanços, retrocessos, esperanças. Formosa. GO: Editora Xapuri Socioambiental, p. 383-417

[4] ANM (2019) Sumário Mineral 2017. Brasília: Agência Nacional de Mineração.

[5] O decreto 10.657/2021 possui como anexo, inclusive, o “Formulário de apresentação de proposta de empreendimentos que demandam articulação interinstitucional para o licenciamento ambiental”.

[6] Hopkins, A. e Kemp, D. (2021) Credibility crisis: Brumadinho and the politics of mining industry reform. Sydney: Walter Kluwer Publishers.

[7] Malheiro, B. C. P. (2019) O que Vale em Carajás? Geografias de exceção e r-existência pelos caminhos do ferro na Amazônia. Tese de Doutorado. POSGEO/UFF. Niterói: Universidade Federal Fluminense.

[8] Bentley, A. F. (1908) The process of government: a study of social pressures. Chicago: The University of Chicago Press.

[9] Kirsch, S. (2010). Sustainable mining. Dialectical anthropology, 34(1), 87-93.

[10] Bourdieu, P. (2014). Postface. La noblesse: capital social et capital symboliue. In: Lancien, D.; Saint-Martin, M. (Orgs.) Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 à nos jours. Ed. de la MSH.

[11] Safra (2020, 10 Jul) Perspectivas para o setor de mineração pós-Covid, com Bento Albuquerque, Ministro de Minas e Energia. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zOlfnHVH6zs.

[12] MME (2019) Sinopse 2019: Mineração & Transformação Mineral. Brasília: Ministério de Minas e Energia.

[13] WWF (2018) Mineração na Amazônia Legal e áreas protegidas: situação dos direitos minerários e sobreposições. Brasília: WWF Brasil.

[14] Sonter, L. J., Herrera, D., Barrett, D. J., Galford, G. L., Moran, C. J., e Soares-Filho, B. S. (2017). Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon. Nature Communications, 8(1), 1-7.

[15] Enríquez, M. A. et al. (2018) Contradições do desenvolvimento e o uso da Cfem em Canaã dos Carajás (PA) Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.

[16] Mintzberg, H. (1987). The strategy concept I: five Ps for strategy. California Management Review, 30(1), 11-34.

Diplomatique: https://diplomatique.org.br/estrategico-para-quem-notas-sobre-o-licenciamento-ambiental-de-projetos-minerais-estrategicos/


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