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Foto: Toru Hanai / REUTERS

Dez anos do desastre de Fukushima: ‘Os sobreviventes, em choque, vagavam como zumbis’

Repórter da Globo relembra cobertura da tragédia tripla de terremoto, tsunami e desastre nuclear no Japão

Pessoas caminham por destroços do tsunami e do terremoto em Miyako, no dia 5 de abril de 2011 Foto: Toru Hanai / REUTERS
Pessoas caminham por destroços do tsunami e do terremoto em Miyako, no dia 5 de abril de 2011 Foto: Toru Hanai / REUTERS

por Marcos Uchôa, via O Globo

Era uma sexta-feira de manhã em Paris, 11 de março de 2011, quando começaram a chegar as notícias que algo muito grave tinha acontecido no Japão, um terremoto seguido de um maremoto. O termo mais usado é uma palavra japonesa que virou internacional: tsunami. Ainda era madrugada no Brasil, mas assim que possível, eu pedi pra embarcar pra Tóquio para ajudar meu colega Roberto Kovalick, que era correspondente lá.

A cobertura de uma tragédia dessa magnitude é muito difícil por várias razões. O acesso ao local fica complicado por causa da destruição. Eu já tinha passado por isso duas vezes, no Sudeste da Ásia, logo depois do Natal de 2004, e no Chile em 2010. No dia 12, aconteceu outra tragédia. Um desastre nuclear na usina Fukushima Dai-ichi fazia com que, além do horror da destruição já acontecida, houvesse o temor de que a radiação pudesse gerar mais mortes e se espalhar.

Era fundamental encontrar uma base para ficar, um hotel numa cidade com tudo funcionando, algo que naqueles dias não era fácil. Acabamos em Oshu, uma cidade nas montanhas — foi um dos primeiros lugares em que a eletricidade voltou.

A central nuclear de Fukushima estava preparada para resistir a um tsunami de até 5,7 metros, mas o que atingiu a costa do Japão dez anos atrás possuía 14 metros. Após a passagem do tsunami e com a energia cortada, os reatores pararam de ser resfriados e entraram em colapso
A central nuclear de Fukushima estava preparada para resistir a um tsunami de até 5,7 metros, mas o que atingiu a costa do Japão dez anos atrás possuía 14 metros. Após a passagem do tsunami e com a energia cortada, os reatores pararam de ser resfriados e entraram em colapso

E foi a partir daí que comecei a descobrir um Japão bem diferente. E com muitos problemas que nada tinham a ver com a tsunami. Basicamente tínhamos que cobrir o desastre de um litoral de cerca de 500 quilômetros do que seriam 3 regiões administrativas: Fukushima, Myagi e Iwate. Esse Nordeste do Japão é uma das partes mais pobres do país. Um lugar de muita gente idosa. Os jovens que podiam saíam para as grandes cidades. Nunca foi um Japão prioritário nos planos do governo.

Na segunda-feira encontramos uma inesperada e desagradável surpresa: faltava gasolina nos postos. O Japão é um país que fica numa área sísmica bastante sujeita a terremotos. Como era possível em tão pouco tempo faltar gasolina? Faltava muito mais coisa. Durante esse tempo todo, existe o choque de imagens absurdas, tal a destruição.

Se o Rio de Janeiro sofresse um tsunami, o equivalente seria assim como encontrar navios carregados pelo mar e estacionados na Praça Saenz Pena, na Tijuca! Algo inimaginável. O mar avançou até dez quilômetros terra adentro em algumas partes; em outras, onde cidadezinhas ficavam no fundo de baías, a força do mar afunilado causou uma destruição ainda maior.

Uma tsunami dessa magnitude exige principalmente um sistema de alarmes e uma população treinada para fugir rapidamente porque existe um tempo entre o terremoto e a onda gigante. No caso do Japão foi de quase uma hora. Mesmo assim, cerca de 18 mil pessoas morreram, muito menos do que as 230 mil da tsunami de 2004, mas essa atingiu 14 países.

Quando se cobre uma guerra, veem-se mortos, mas não tantos como numa tsunami, que mata muita gente em pouquíssimo tempo. O contraste entre o antes e o depois é brutal! E por isso você nota nos sobreviventes um ar de incompreensão e choque, como se vagassem feito zumbis. Alguns ainda estão feridos, outros procuram por desaparecidos. A pessoa perdeu parentes, amigos, vizinhos, muitas vezes toda uma comunidade.

Ela perdeu sua casa, todos seus pertences,suas fotos, suas memórias. Ela perdeu também sua privacidade. Está abrigada numa escola ou algum prédio do governo ainda de pé.

Pior. Estávamos ainda no inverno, em vários dias nevava.

A solidão bate forte. A população sobrevivente que não conseguiu fugir estava às voltas com um frio de rachar, com fome. E a preocupação com o futuro. Que futuro? Sem moradia, sem emprego?

Uma tsunami é uma tragédia que leva muito mais do que se pensa. É a vida virada pelo avesso. Horrível se voce é adulto, jovem ou criança. Para um idoso é ainda pior. Como recomeçar do zero?

Me lembro de uma senhorinha, fofa no seu jeito gentil tão japonês,chorando sozinha num cantinho de uma sala de aula de uma escola. Um contraste terrível com as imagens nas paredes dos desenhos das crianças com flores e um sol sorridente.

Além do tsunami e da radiação:Na contramão da maior parte do mundo, mortalidade cai no Japão no ano da pandemia

Me lembro de um cemitério destruído e cheio de carros e barcos no meio dos túmulos e de uma familia visitando. Para os japoneses, os mortos estão muito presentes na vida deles. É uma relação com seus antepassados muito mais íntima do que a nossa. A tsunami levou lápides, memórias, símbolos muito fortes para as famílias.

No ano anterior, em 2010, eu cobri a tsunami do Chile. Eram um problema os engarrafamentos nas estradas porque os chilenos por iniciativa própria compravam comida, água, colchões e iam entregar nas regiões mais destruídas. Solidariedade espontânea. Em todo o tempo que estivemos lá no Japão, eu só vi isso uma vez. Foi uma caravana de brasileiros — há cerca de 250 mil no Japão. Com 3 caminhões e um ônibus, eles chegaram a Sendai com muitos mantimentos pra distribuir. Nevava muito e a fila era enorme.

Fomos à cidade de Fukushima. Eram uns 70 quilômetros de distância da usina. Naqueles dias, a cidade parecia meio deserta, todo mundo que podia estava dentro de casa por causa da radiação. Ali não fazia parte da zona de exclusão, mas os ventos levavam a radiação mais longe, e todos tinham medo.

Naquelas semanas, o pânico pelo que estava acontecendo na usina e a possibilidade de uma tragédia que afetasse até a capital japonesa mobilizavam o noticiário. E deu pra notar que a população local se sentia progressivamente abandonada porque o noticiário da usina ia predominando. Era mais uma vez a Tóquio rica, cosmopolita, mundial, cheia de correspondentes, contra uma região pobre e ignorada. Era o Japão moderno, tecnológico,da terceira maior economia do mundo, contra o Japão atrasado.

Nas duas semanas em que estivemos lá, nós não encontramos nem uma vez sequer um jornalista que não fosse japonês, algo que nunca tinha acontecido em situações assim. O curioso é que quando se perguntava às pessoas se elas estavam com medo de uma explosão nuclear, os problemas já eram tantos que esse parecia distante.

Eu já tinha ido ao Japão várias vezes:, Fórmula 1, vôlei, Olimpíada de Inverno, Copa do Mundo, Mundial de clubes, G-8 e claro não pude deixar de visitar os templos e jardins. Esse é o Japão que o mundo admira. O tradicional com o supermoderno. Mas tem outro lado curioso.

No xintoísmo, religião de muitos japoneses, existe uma reverência pela natureza. Árvores, riachos, montanhas são sagrados. No entanto, nunca vi um país destruir sua natureza de maneira tão brutal e sistemática. O Japão tem um litoral horroroso, mais de metade dele é acimentado, concretado, quase não se veem praias. Imagine, mais de metade do litoral de um país! Mesma massa cinzenta “protegendo” a população do mar. Como se viu na tsunami, essa proteção não funciona.

O Japão vai sediar este ano sua segunda Olimpíada, mesmo com os problemas criados pela pandemia. Dia 25 começa o revezamento da tocha justamente em Fukushima, num estádio da cidade. Na cerimônia de encerramento da Olimpíada do Rio de Janeiro, a representante do governo japonês foi a governadora da região de Tóquio. Na época, ela era a terceira pessoa no mandato em 5 anos. Os dois anteriores foram afastados por corrupção.

Em nome do perigo de possíveis terremotos e tsunamis, os sucessivos governos têm um acordo com as empresas de engenharia. Muitos contratos, muitas obras, muitos subsídios, muito dinheiro. Tudo lubrifica a indústria de construção e a política.

A gente conhece essa história.

No Japão, ela continua.

*Marcos Uchoa é repórter da TV Globo, foi correspondente internacional e cobriu a tragédia no Japão em 2011

O Globo: https://oglobo.globo.com/mundo/dez-anos-do-desastre-de-fukushima-os-sobreviventes-em-choque-vagavam-como-zumbis-24919315


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