Longa-metragem de Geraldo Sarno faz revisão sobre a mitologia sertaneja e a formação histórico-social do país. Se inicia com Canudos, versa sobre a migração ao sudeste e a volta à origem – com forte sentido político e ousadia na linguagem

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles, via Outras Palavras
Sertânia, de Geraldo Sarno, em cartaz no 47º Festival Sesc Melhores Filmes, não é apenas “mais um” filme sobre o sertão nordestino e sua saga multissecular de beatos, cangaceiros, jagunços e retirantes que se matam uns aos outros para perpetuar o poder das oligarquias. Até que surja outra à altura, é a obra “definitiva” sobre esse universo, ao passar em revista sua história, sua mitologia e sua iconografia, e com isso oferecer não apenas um retrato vívido da região, mas uma leitura da formação histórico-social de todo o país.
Num breve preâmbulo, um homem com sua viola, à luz do luar, anuncia a história que se contará. É uma fórmula clássica, que bebe na fonte da literatura de cordel e na tradição dos cantadores de feira. Em seguida, vemos um homem ferido rastejando com grande esforço pela caatinga, acompanhado por uma câmera ao rés do chão. É a história desse homem, Antão (Vertin Moura), vulgo Jararaca, vulgo Gavião, que será narrada, de modo descontínuo e delirante.
Estado mental
O filme todo, aliás, pode ser visto como uma projeção do estado mental desse sertanejo moribundo, o que justifica não apenas os avanços e recuos no tempo como também a sobreposição de várias dimensões: a da memória, a da alucinação, a do mito. E a acidentada biografia de Antão ilumina eventos e situações cruciais da história do Nordeste e do país.
O fato primordial, tanto no percurso do personagem como na constituição do Brasil moderno, é o massacre de Canudos, em que, ao que parece, o pai de Antão foi morto. Nos alvores da república, o país nascia sob o signo da violência e da exclusão social. Antão, ainda criança, é levado a São Paulo junto com a mãe (Kecia Prado) por um oficial que participou do massacre, o major Solon (Lourinelson Valdmir). Ela trabalha de doméstica e ele cresce sob a égide do militar, que o alista na força pública para reprimir greves e movimentos operários.
Já está presente aí um tema caro ao veterano diretor Geraldo Sarno, a migração de nordestinos para o sudeste, à qual dedicou um documentário fundamental dos anos 1960, Viramundo. Fica nítida também a mirada política do diretor, um corte social que aproxima os sertanejos pobres de Canudos e os operários combativos do início do século 20 em São Paulo como estorvos ao projeto de modernização conservadora dos donos da república. Uns e outros oprimidos com a mesma truculência estatal e paraestatal.
Mas Antão volta ao sertão, onde se desenrolará todo o restante do filme. Sua trajetória, como jagunço do Capitão Jesuíno (Julio Adrião), “o encourado, maioral do sertão”, lançará luz sobre as complexas e sujas relações entre o cangaço, a Igreja, os latifundiários e comerciantes da região – com os sertanejos pobres sempre como vítimas preferenciais da violência e da fome.
Não é o caso de antecipar os numerosos episódios desse jorro narrativo de força ímpar. O importante é que, a par de uma leitura lúcida e coerente da violenta história social do sertão, Sertânia empreende uma revisão da mitologia sertaneja consagrada em sua cultura (já falamos do cordel e dos cantadores de feira) e em sua iconografia, que inclui o registro documental-etnográfico (os rostos, corpos, objetos e afazeres dos homens e mulheres do interior) e todo o repertório cinematográfico do chamado nordestern.
Mais que as remissões pontuais a clássicos como Vidas secas, Os fuzis e Deus e o diabo na terra do sol, cabe atentar para a fotografia excepcional (de Miguel Vassy) em preto e branco, em especial o uso radical e criativo da “luz estourada” – uma transgressão explorada pelo cinema novo do início dos anos 1960 –, que em certos momentos deriva para o alto-contraste e cria grafismos de grande beleza.
Sertão sem fronteiras
Junte-se a isso o recurso frequente a névoas e fumaças, bem como uma orquestração precisa dos ruídos e da música (quase toda do compositor baiano Lindembergue Cardoso) e o resultado é um universo sem fronteiras e sem referências, embora a materialidade da terra e da vegetação sertaneja estejam sempre presentes, até mesmo na representação do mundo além da morte. O sertão, afinal, está em toda parte, como dizia Guimarães Rosa.
É nesse mundo sem limites entre o real e o imaginário que se justifica uma menção “antirrealista” à pintura do pré-renascentista italiano Giotto, num plano fixo em que os membros de um coro de igreja, filmados de perfil, ostentam leques redondos à volta da cabeça, fazendo as vezes de auréolas de santos. Veja a cena aqui:
Do documento cru à epifania religiosa, tudo cabe no turbilhão criativo desse cineasta octogenário que filma com o vigor e a ousadia de um garoto.
Faltou dizer que alguns atores encarnam mais de um personagem. Por exemplo, Lourinelson Vladmir, além do major Solon, interpreta também os coronéis nordestinos Militão e Delmiro Gouveia (ao qual Sarno dedicou um longa-metragem de ficção em 1978). Julio Adrião é o Capitão Jesuíno e também o pai de Antão. Esse procedimento, mais do que um mero jogo metalinguístico, serve para adensar o sentido político da narrativa, ampliando suas possibilidades de leitura e instigando o espectador a fazer conexões entre os vários papéis sociais e psicológicos.
À parte isso, há dois momentos de intervenção metalinguística mais direta, em que são expostas as circunstâncias de filmagem, verdadeiros safanões “brechtianos” para lembrar que tudo é construção, invenção, faz de conta. Mas a vida real, dolorosa e inescapável, pulsa a cada plano.
Matéria Original: https://outraspalavras.net/poeticas/cinema-sertania-a-volta-ao-nordeste-e-seus-simbolos/
Deixe um comentário