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A degradação ambiental no sertão nordestino só contribui para agravar a situação da seca. / Fotos: Liliana Peixinho

Elos de dor e alegria nordestina

A indústria da seca caminha no sentido contrário ao discurso da sustentabilidade. Programas oficiais abraçam a terminologia como sendo inerente a eles. No fundo, tudo não passa de retórica vazia. O “Água para todos”, por exemplo, decepciona naquilo que o próprio nome promete. Prova disso são as torneiras secas há meses lá no sertão. Enquanto isso, o flagelo da seca se abate sobre 10 milhões de Nordestinos.

“A gente tem o tíquete dado pela associação para receber àgua do carro-pipa. É uma disputa danada. Quando a àgua chega, as vezes até suja, a gente tem que dividir com todos os moradores e usá-la com muito cuidado, porque nunca se sabe quando o próximo carro vai chegar”, diz  dona Lídia Oliveira, 62, moradora da comunidade rural, Umburana, municipio de Senhor do Bonfim.

Tristeza familiar

Na roça do seu Sabino Ferreira, 79, e dona Iracema, 80, na Passagem Velha (BA), das 20 cabeças de gado que produziam 50 litros de leite por dia, seis morreram logo nos primeiros meses de 2012, quando se abateu na região a maior seca dos últimos 40 anos. Com uma aposentadoria de cerca de R$ 600, seu Sabino não consegue mais pagar o trabalhador da roça nem comprar água do carro-pipa, que custa cerca de R$ 200. A feira semanal também é prejudicada. Ela não contempla mais a necessidade alimentar da família. A isso somam-se as receitas de remédios caros para combater o colesterol alto e outras doenças cardiovasculares de dona Iracema, males esses ligados a uma dieta pobre em nutrientes, baseada em café com açúcar e farinha, cuscuz e carne de bode gorda. A mulher, apesar dos 80 anos, não é aposentada, e as dificuldades são muitas para dar conta, sozinha, de todos os afazeres domésticos: limpar, cozinhar, varrer, lavar, costurar, além de ir na cidade comprar o pão. Foi assim a vida toda de casada, onde os cinco filhos sobreviventes (tiveram sete crianças no total) foram criados com muita luta.

Crianças buscam alguma diversão em uma terra seca pela falta de chuva

Logo que levanta de noites mal dormidas, dona Iracema molha sua horta, os pés de pinha, mamão, laranja, coco e o frondoso abacateiro. Era nele que armava uma rede à sombra para descansar. Agora, ela mostra tristeza em olhar a árvore totalmente morta pela seca. Os netos e bisnetos, que sempre frequentaram os quintais da casa, não têm mais vontade de brincar no terreiro esturricado. Vidas vão se sucumbindo aqui e ali, e seu Sabino, com os olhos lacrimejados e a voz rouca, lamenta: “Se a gente morre, o gado também morre, e vai se fazer o quê?”

Solidariedade coletiva

Seu Raimundo, 76, sofre com problemas de articulação. Cheio de dores, apóia-se em um cajado para andar. Ele leva mais de meia hora para caminhar uns dois quilômetros, até a casa de amigos como dona Iracema, onde vai quase toda tarde tomar um cafezinho, fumar um cigarro de palha, jogar dominó e atualizar as novidades sobre os bichos, a família, os amigos e alimentar as esperanças de que a chuva vai chegar. Sempre leva algo para presentear a amiga, seja um fósforo, uma tapioca, uma casca de árvore para alguma dor, uma muda de planta, umas mangas, acerolas ou outras frutas que consegue, como um milagre, cultivar em sua roça. Pessoa de muito carinho e atenção para ouvir cada um que lhe chega, seu Raimundo é desses bons conselheiros e contadores de histórias.

Raimundo, Sabino e Iracema: amizade que ajuda a suportar o flagelo

O vizinho de roça de Raimundo é seu Boanerges, 72 anos. Os dois são como anjos guerreiros de fé, luta, amor e respeito. Enquanto Raimundo é obrigado a andar todo tortinho, corcunda, seu Boarnerges, também de saúde frágil, já tendo passado algumas vezes pela mesa de operação, não mede esforços para a labuta. Em sua horta, cultiva couve, espinafre, coentro, cebolinha, alface e outras folhas. Mas o dinheiro que tira com a venda desses produtos não cobre o trabalho que tem em pegar um ônibus e levar para cidade mais próxima para vendê-los na feira.

De coração mole e cultivador de boas amizades, seu Boanerges distribui muitas dessas hortaliças com seus vizinhos. No mês de janeiro, em plena seca, a horta dele acabou. As vacas, doidas de fome, pisaram em todos os pés plantados e regados à mão com muito carinho e sem nenhum agrotóxico. Mas ele não desistiu e replantou tudo, semente por semente, muda por muda. O que salva mesmo, segundo ele, é o dinheiro da aposentadoria que recebe. E, com ele, ajuda os filhos, netos e sobrinhos. Seu Boanerges é um dos primeiros moradores da Passagem Velha e conhece tudo por ali: as histórias de cada roça, quem eram seus proprietários, o tamanho da área, quem comprou de quem, quem morreu, quem casou, quem separou.

Dona Vanda serve café à repórter Liliana Peixinho

Comida regrada

Dona Vanda Maria Macedo, 48 anos, já saiu da Bahia para São Paulo, para dar suporte a gravidez da filha de 19 anos, que saiu da roça para tentar um trabalho na cidade grande. Ela ficou por lá de dezembro a março, quando teve que voltar para Euclides da Cunha para cuidar dos outros filhos que ficaram no sertão. Ela fala sobre como sobrevive para enfrentar o desemprego e regrar o benefício da Bolsa Família: “são dois quilos de feijão, um quilo de arroz, dois quilos de açúcar, um litro de óleo, dois quilos de farinha, dois pacotes de fubá. Tudo é rigorosamente dosado para durar duas semanas”.

A família é numerosa e não tem outros complementos alimentares nos quintais, como pés de frutas, legumes e hortaliças. Para isso, seria necessário água para molhar a plantação todo dia pela manhã e à tardinha.

Dona Vanda me serviu um cafezinho muito do bom e eu agradeci oferecendo um pacote de milho de pipoca, que pedi às crianças para pegarem no banco de trás do carro, estacionando num sol quente de pelar o corpo. Rudinei dos Santos, 10 anos, e seu irmão Andinho, 12, adoraram a novidade. Comendo pipocas sentados no sofá, eles contam como fazem para chegar à escola. Rudinho, o mais novo, vai de perua até a Lagoa do Saco e Andinho, o mais velho, até Currafaço, onde um ônibus da prefeitura passa, de casa em casa, pegando cada aluno até chegar na Escola Professora Alice Tereza dos Anjos, em Euclides da Cunha, há cerca de 30 quilômetros da roça onde moram. Mesmo nesse cenário de desafios, os meninos são encantadores, rápidos, sem preguiça para o fazer.

Fonte: Mercado Ético

A degradação ambiental no sertão nordestino só contribui para agravar a situação da seca. / Fotos: Liliana Peixinho
A degradação ambiental no sertão nordestino só contribui para agravar a situação da seca. / Fotos: Liliana Peixinho

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