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O projeto nuclear em xeque

Lançado no último dia 06 de outubro, durante audiência pública na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara Federal, estudo da Plataforma Dhesca Brasil denuncia provável contaminação da água que abastece a região ao entorno da mina de urânio em Caetité, Bahia, e impactos no meio ambiente e na saúde da população.

Imagine temer beber água contaminada; produzir alimentos e não ter como vendê-los; conviver com a iminência de cânceres; sofrer perseguições e, ainda por cima, deparar-se com o silêncio das autoridades como resposta a cada questionamento. Este é o cenário enfrentado pelos moradores de Caetité, cidade localizada a 750 km de Salvador, na qual está em operação, desde 2000, a Unidade de Concentrado de Urânio das Indústrias Nucleares do Brasil (URAINB), responsável pela atividade de mineração e transformação do urânio mineral em licor de urânio e este em concentrado de urânio, a principal matéria prima do combustível nuclear.

Desde a instalação da usina, os problemas já enfrentados em uma cidade naturalmente uranífera, com parco abastecimento de água e até então sem energia elétrica, só aumentaram. A fim de viabilizar o empreendimento, a INB promoveu acordo com os moradores para usar a água extraída dos poços localizados em pequenas propriedades privadas, em troca de promessas de emprego e desenvolvimento local. Ao invés disso, entretanto, passou-se a vivenciar crescente falta de água, inviabilizando diversas atividades, da agricultura à lavagem de roupa. Pior ainda, em 2008, vários desses poços foram fechados, após um estudo solicitado pelo Greenpeace detectar alto índice de radioatividade da água, acusação comprovada pelo Instituto de Gestão das Águas e Clima (INGÁ). Pouco tempo depois, sem que estudo ou entidade demonstrasse o contrário, os poços foram reabertos. Desde então, os agricultores são compelidos a buscar outros mercados que desconheçam a procedência dos produtos O projeto nuclear em xeque à venda. Todos temem a contaminação que pode vir de Caetité. Diante da ameaça à vida de Padre Osvaldino, um dos defensores das comunidades da região, hoje incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, vinculado à Presidência da República, e enfrentando o sigilo que caracteriza historicamente a abordagem da questão nuclear no Brasil, a Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania, em conjunto com a Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité, requereu, através da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, a realização de missão de investigação pela Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente, vinculada à Plataforma Dhesca Brasil – Rede Nacional de Direitos Humanos.

A socióloga Marijane Lisboa, relatora para o Direito Humano ao Meio Ambiente, pesquisou a situação entre 2009 e 2011, visitando a localidade e recolhendo evidências e depoimentos de movimentos e autoridades locais. Com isso, conseguiu demonstrar que a população carece de informações confiáveis sobre a atividade mineradora e seus impactos, especialmente na saúde. Não há, por exemplo, pesquisa sobre a incidência de mortes por câncer na população, embora seja comum ouvir um vizinho ou outro relatar conhecer alguém que sofre com o câncer. O único estudo médico encomendado pela INB não permite até agora conclusões confiáveis.

Blindagem

Ali, tudo parece conspirar para proteger a INB e evitar o conhecimento profundo de suas atividades”, declarou a relatora, que teve negado seu pedido para visitar as instalações e as condições de trabalho existentes na empresa. Além da fragilidade de órgãos públicos com capacidade para interferir na situação, como o Ministério Público, que não tem sequer procurador nomeado, “não existe, na cidade, uma unidade médica de oncologia”. Constatando-se a existência do câncer, a população tem que procurar atendimento em Vitória da Conquista, distante oito horas, ou Salvador, longe doze horas, ou ir para São Paulo.

Durante a audiência que tornou público o Relatório da Missão Caetité: Violações de Direitos Humanos no Ciclo do Nuclear, Padre Osvaldino, integrante da Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité, questionou: “A quem interessa continuar sem um estudo profundo para comprovar a causa das mortes?”. De acordo com ele, há alto índice de leucemia e neoplasia nas comunidades próximas da mina, o que levanta suspeitas acerca da contaminação da bacia hidrográfica que banha a região. “Só da comunidade de Juazeiro, a 8 km da mina, neste último ano, morreram de neoplasia de sangue duas mulheres. Na comunidade Salinas, morreu uma criança de um ano e seis meses de leucemia. Na comunidade da Vaca, mais outra. Na Comunidade São Francisco, outra pessoa já detectou estar com leucemia.”, alertou. Já a presidente da Associação da Comunidade de Riacho da Vaca, Elenilde Barbosa, destacou que a associação buscou suprir a demanda de água através da solicitação de caixas de captação da água da chuva. A moradora soube, entretanto, que a instalação delas foi impossibilitada devido à contaminação do ar e às explosões resultantes da detonação do minério, que poderiam vir a quebrar os recipientes. Apesar disso, é desta água provavelmente contaminada que os animais bebem e as pessoas pescam, fatos que alertam para o possível raio de disseminação da radioatividade. Além da problemática em torno da água, bem essencial de todos, também a moradia da população está ameaçada. Em Caetité viviam comunidades quilombolas que tinham sua vida relacionada ao uso coletivo da terra. Com a chegada da empresa, de acordo com Osvaldino, houve desapropriações que modificaram a cultura local e levaram ao óbito de, ao menos, um morador. Por outro lado, vinte e seis famílias que vivem nas proximidades da mina, recebendo o gás radônio diretamente em suas casas, querem ser reassentadas, algo que até hoje não foi feito. A população reclama ainda a ausência de uma discussão coletiva em torno dos reparos necessários às casas que sofrem rachaduras a cada explosão.

Urânio no chão

Se muitas dúvidas e desconfianças rondam os moradores das comunidades próximas à mina, o relato dos trabalhadores da INB mostra os graves riscos a que eles estão sujeitos. De acordo com o integrante da diretoria do Sindicato dos Mineradores de Brumado e Micro Região, Lucas Mendonça, os trabalhadores não possuem a segurança necessária para quem trabalha com material radioativo. Alguns, inclusive, já entraram em contato direto com o urânio para evitar acidentes que poderiam comprometer a vida na região. Em maio, Lucas participou de uma dessas situações. Como a mina havia sido paralisada por dois meses, o que comprometeria a obtenção das quatrocentas toneladas de produção anual estimadas, a INB recebeu carga de urânio da Marinha do Brasil e operou, mesmo não tendo licença para isso, o reentamboramento do material radioativo.

“Nunca tinha feito esse tipo de operação, que foi totalmente improvisada. (…) A segurança dos trabalhadores foi totalmente neglicenciada.”, denunciou o sindicalista atualmente em greve. “Chegou- se a despejar urânio no chão e pegar de pá para colocar dentro dos tambores. Portões foram abertos para tirar a poeira do local e jogar para fora, expondo os trabalhadores que estavam em outras áreas”. Nos primeiros dias, trabalhadores desmaiaram devido à ausência de condições mínimas de trabalho. “Colocaram os trabalhadores terceirizados com equipamento de proteção individual aquém do que poderia ser. Com marretas tentaram descompactar o material dos tambores e derramava-se o material de um tambor para o outro.”. Os terceirizados vindos de outras cidades chegaram a utilizar os macacões descartáveis dos trabalhadores da empresa, após estes serem usados e lavados, conforme relembra Lucas.

A ação desastrosa legou à empresa multas de R$600 mil e, posteriormente, R$2 milhões. Os impactos sobre a saúde desses trabalhadores, no entanto, não podem ser quantificados, ao menos por eles. Embora o presidente da INB, Alfredo Tranjan Filho, tenha afirmado, durante a audiência na Câmara, que a empresa acompanhava a saúde dos seus trabalhadores, Lucas Mendonça afi rma o contrário: “Nenhum trabalhador recebeu resultado de exames. Todos os trabalhadores que participam dessa área [setor 170, no qual se deu a operação de reentamboramento] têm coletado urina e feito exames, mas embora tenham requisitado seus resultados, nunca os receberam. O clima lá dentro é de medo. A empresa diz que não tem contaminação, mas nunca liberou os nossos exames. O sentimento é de desamparo, não se tem a quem recorrer”, desabafa.

A auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Fernanda Giannasi, que há mais de vinte anos acompanha a situação das empresas ligadas ao setor nuclear, confirmou as denúncias dos trabalhadores da INB após ida ao local. Lá ela encontrou vazamentos em paredes, marcas de urânio no piso e no portão do setor 170, além de um sistema de exaustão absolutamente precário. Diante da situação, Giannasi solicitou a interdição do setor para que a empresa realizasse o tratamento da área, a fim de evitar que o pó se espalhasse para fora. Assim como a interdição, que logo foi suspensa pelo Ministério do Trabalho, outra recomendação da auditora não foi efetivada: a eliminação dos contratos terceirizados para dar fim à alta rotatividade de trabalhadores precarizados, que hoje já somam 330, diante de 180 orgânicos, de acordo com o próprio presidente da INB, Tranjan Filho.

Durante o lançamento do relatório, a auditora questionou como uma atividade fundamental para a empresa poderia ocorrer tendo como base vínculos empregatícios tão frágeis. Giannasi cobrou ainda a regulamentação da convenção 115 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, que diz que todos os trabalhadores expostos ao material radioativo deverão submeterse a exames médicos e serem acompanhados apropriadamente, antes ou depois da ocupação de seus postos, o que, conforme avalia, também não tem sido cumprido pela INB.

Fonte: Brasil de Fato

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